Ditadura investigou Fazenda do Povo, projeto pioneiro de reforma agrária no sul da Bahia
Com enxada nas mãos, Givaldo Ramos dos Santos, 46, amacia a terra e prepara o canteiro para as sementes de hortaliças, que serão protegidas sob uma camada de palha até começarem a despontar como ramos de coentro, salsa, cebolinha e manjericão.
Ele é um dos trabalhadores da Fazenda do Povo, a 11 quilômetros do centro de Ipiaú, cidade do sul da Bahia. Aprendeu a mexer com a terra com os pais, que ajudaram a erguer o povoado há seis décadas, quando receberam um pequeno lote em uma área desapropriada pela prefeitura.
Projeto pioneiro de reforma agrária da Bahia, a Fazenda do Povo surgiu em 1963 após a desapropriação de uma área improdutiva de 167 hectares na zona rural de Ipiaú. Seu mentor foi o então prefeito Euclides Neto (1925-2000).
A iniciativa, celebrada pelos agricultores e vista com reserva pelos latifundiários, foi investigada em um Inquérito Policial Militar e por pouco não foi interrompida após o golpe militar de 1964.
Ipiaú tinha cerca de 20 mil habitantes e despontava como um dos principais polos cacaueiros no sul da Bahia. Euclides fora eleito em 1962 pelo Partido Democrata Cristão, vencendo o candidato de Urbano Neto, conservador e dono de armazéns de cacau.
Euclides Neto vinha de família remediada, tornou-se advogado, escritor e intelectual com ideias progressistas. Fez parte de uma geração de prefeitos de esquerda da Bahia que incluiu Virgildásio Senna (Salvador), Francisco Pinto (Feira de Santana) e José Pedral Sampaio (Vitória da Conquista) —estes três defenestrados do cargo e presos pelo golpe de 1964.
Nascido em Ubaíra, Euclides estudou em Salvador, onde chegou a se filiar ao Partido Comunista Brasileiro. Seu trabalho com a terra começou em Ipiaú, ajudando a mãe e os oito irmãos a cuidar de uma fazenda de cacau endividada que havia sido de seu avô.
“Ele vinha ajudar a cuidar da fazenda e tinha que plantar, capinar, fazer cerca. Essa experiência deu a ele a noção do que é o trabalho braçal. Ele criou uma relação visceral com a terra”, diz a arquiteta Denise Teixeira, filha de Euclides Neto e responsável pela edição de suas obras completas.
Na prefeitura, Euclides encontrou um cenário devastador nas contas públicas e uma cidade com a economia prejudicada após uma seca de dois anos, que deixou uma legião de famílias empobrecidas.
A Fazenda do Povo foi concebida em 1963, primeiro ano da gestão de Euclides. A área foi desapropriada e os lotes distribuídos a preço simbólico. Quem não tinha dinheiro pagou com serviços —pedreiros ergueram casas, agricultores semearam roças e até uma benzedeira quitou com rezas o imóvel que recebeu.
O agricultor Railton Santos Nascimento, 46, que hoje planta hortaliças na Fazenda do Povo e vende a produção na zona urbana de Ipiaú, vê o projeto como superação de prática arcaicas do passado. “Antes de receberem essa terra, meus pais trabalhavam para os fazendeiros, na terra dos outros. Muitas vezes só em troca de comida”, lembra.
Seis décadas depois, o assentamento cresceu, se tornou um distrito de Ipiaú e abriga cerca de 300 famílias. Além da produção de hortaliças, os agricultores se uniram para produzir cacau, que voltou a ascender na região após a crise da vassoura-de-bruxa.
Com habilidade política, o prefeito soube frear as resistências e também abraçou projetos de interesse dos grandes fazendeiros, como a construção de um parque de exposições com recursos doados pelos próprios latifundiários.
A reforma agrária era uma das principais bandeiras do então presidente João Goulart [1919-1976] e esteve no centro do embate político que antecedeu o golpe de 1964.
No comício na Central do Brasil, no Rio, Jango anunciou que desapropriaria terras às margens de rodovias, ferrovias e açudes. A reação foi avassaladora e o presidente seria derrubado por um golpe de estado duas semanas depois.