Folha de S.Paulo

Brasileiro que ‘tomou’ hotel de NY acumula histórias improvávei­s

Folha conversou por telefone com Mickey Barreto, preso por usar brechas legais para se tornar dono de edifício

- nova york

Ele nasceu Marco Aurélio Canuto Muniz Barreto em Uruguaiana (RS), há 49 anos. Agora, conhecido como Mickey Barreto, ele frequenta manchetes americanas por uma façanha que desperta incredulid­ade entre os mais cínicos observador­es da selva imobiliári­a de Nova York, a cidade onde um apartament­o de 10 m² sem banheiro ou cozinha foi recentemen­te anunciado para aluguel em Manhattan por US$ 1.200 (quase R$ 6.000) mensais.

Marco Aurélio era bom aluno e nunca se meteu em encrencas, de acordo com parentes, até emigrar para os Estados Unidos para estudar administra­ção numa faculdade da Igreja Mórmon, em 1997. Já Mickey Barreto morou de graça, por cinco anos, num quarto do histórico hotel New Yorker, em Manhattan —uma joia arquitetôn­ica art déco, construída em 1930, cujo passado de glorioso de frequentad­ores da elite agora está confinado a fotos desbotadas.

O quarto que ele ocupou com o companheir­o e hoje, nas suas palavras, “amigo platônico” Matthew Hannan, foi a cena de uma ação de despejo, em julho passado, que resultou na prisão temporária de Barreto. Ele responde ao processo em liberdade, mas está exposto a pena de reclusão.

Em fevereiro, o procurador de Manhattan Alvin Bragg indiciou Mickey Barreto por múltiplas acusações de fraude imobiliári­a e descumprim­ento de ordens judiciais.

A história começou em 2018, quando Barreto entrou no pequeno quarto do New Yorker para passar uma noite pela diária de US$ 200,57. Mas não fez checkout e passou os anos seguintes explorando uma lei obscura de 1969. Qualquer morador de Nova York considera os ocupantes dos remanescen­tes apartament­os regulados por essa lei como ganhadores da loteria. Obstinado na sua pesquisa, Barreto descobriu que alguns prédios de hotéis antigos da cidade também estavam enquadrado­s nessa legislação, o que permitiria a hóspedes se tornarem residentes permanente­s.

O que se seguiu foi uma tentativa bem-sucedida, até o ano passado, de ocupar o quarto sem pagar nem um dólar sequer. Mas Barreto foi adiante e decidiu desafiar a posse do prédio de propriedad­e da Igreja da Unificação, a denominaçã­o coreana fundada pelo reverendo Sun Myung Moon. Uma combinação de emaranhado legal e descaso burocrátic­o escalou a ação para a tentativa de tomar posse de todo o prédio de 42 andares do hotel, explorando de maneira criminosa, de acordo com os promotores de Manhattan, brechas nas leis municipais. Nesta quarta-feira (27), a Folha conversou por mais de uma hora, por telefone, com Marco Aurélio/Mickey. Para quem está desemprega­do e depende de um defensor público do Bronx que não lhe retorna as chamadas há dias, o gaúcho naturaliza­do americano soa calmo e solícito diante da atenção que desperta.

A história que Barreto tem para contar é recheada de conspiraçõ­es como perseguiçõ­es da máfia —que, segundo ele, enterrou por algumas horas seu filho Jason no Central Park, quando ele não aceitou US$ 500 milhões para desistir de tomar o hotel— e personagen­s grandiosos como Cristóvão Colombo —de quem ele afirma ser descendent­e.

É uma história cuja fronteira tênue entre realidade e extrema improbabil­idade desafia o papel de repórteres que conduzem apuração de fatos, não avaliações de saúde mental.

Barreto diz ter votado em Donald Trump, em 2016, mas sofreu uma decepção profunda quando ele não respondeu a uma carta sua. Afirma não ter votado em 2020, mas relata, orgulhoso, que uma carta sua a Joe Biden reclamando posse de terras americanas “por meio de dom João 6º” resultou, em dezembro, num telefonema do presidente americano para lhe desejar feliz Natal.

Neste ponto da conversa, esta repórter perguntou se Barreto considerou a possibilid­ade de usar a saúde mental como um argumento em sua defesa. Afinal, ele confessou ter sofrido de depressão e sentimento­s suicidas, a ponto de se internar num hospital de Manhattan por três dias antes de ir para o hotel New Yorker.

A Folha fez a mesma pergunta por escrito ao defensor Brian Hutchinson e não obteve resposta. Mas Barreto não hesita: “Eu não alegaria este impediment­o porque nunca fui diagnostic­ado com qualquer problema de saúde mental.”

Indagado sobre a relação com os dois filhos, fruto do casamento com a americana Yvette Nicole Barreto, de quem se separou em 2018, Barreto admite que não vê o filho caçula Paul, prestes a completar 18 anos, desde 2021. Numa recordação tortuosa e impossível de ser verificada, ele diz que Paul fugiu de casa e mora hoje com Jenniffer Ryan, uma moradora de Manhattan, depois de o pai ter sido acusado de bater no menino. Barreto nega a agressão.

A Folha entrou em contato com Ryan no endereço apontado por Barreto, mas ela disse que não podia comentar se obteve a custódia de Paul. Tanto Paul quanto Jason, o filho de 19 anos, foram atores mirins na Califórnia e são membros sindicato de atores SAG, em Los Angeles. Paul interpreto­u o filho de Steve Jobs, fundador da Apple, no filme “Jobs”.

E como Marco Aurélio virou Mickey? A explicação desafia a credulidad­e. Ele diz que, para adquirir cidadania americana, em 2014, o Departamen­to de Segurança Interna declarou que ele não poderia ter um nome tão longo e teria obrigado o brasileiro a adotar um nome americaniz­ado. O homônimo do imperador romano batizado em Uruguaiana foi deposto, e Mickey Abraham emergiu como o novo cidadão.

O único momento da conversa em que Mickey Barreto hesitou e deu qualquer sinal de nervosismo foi quando esta repórter citou um registro criminal de 2008, na Califórnia, onde ele morava, relativo a um Marcos Barreto com a mesma data de nascimento.

Uma das prisões é caracteriz­ada como crime de falsificaç­ão sob o código penal do estado. No final dos anos 1990, período que correspond­e aos anos em que Barreto estava na faculdade mórmon Brigham Young em Provo, no estado de Utah, há registros policiais de infrações de trânsito, incluindo embriaguez ao volante. Depois de dizer que não se lembra de ter sido preso antes, Barreto é categórico e afirma não ter passagens anteriores pela polícia.

Segundo Barreto, a próxima audiência judicial vai ocorrer em Manhattan em 1º de maio. Sobre seu estado de espírito, ele diz que tem se consolado no desabafo com repórteres e novos conhecidos impression­ados com sua aventura.

E, como acontece com o outro fabulista de origem brasileira em Nova York, o deputado George Santos, expulso do Congresso americano, a vida de Mickey Barreto já é objeto de interesse de produtores de filmes. A primeira da fila, segundo ele, foi a diretora e produtora de Los Angeles Jennifer Sims, que ainda não teve sucesso na investida.

Lúcia Guimarães

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O brasileiro Mickey Barreto
John Taggart - 12.mar.24/The New York Times O brasileiro Mickey Barreto

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