Folha de S.Paulo

Sei que não posso apagar o incêndio sozinha, estou só fazendo minha parte

‘Sei que vou encontrar um indiscreto, um ingrato, um grosseiro’, assim falou Marco Aurélio

- Mirian Goldenberg Antropólog­a e professora da Universida­de Federal do Rio de Janeiro, é autora de “A Invenção de uma Bela Velhice”

No ano passado, escrevi o prefácio da nova edição de “A Convidada”, primeiro romance de Simone de Beauvoir. Baseado no triângulo formado por Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre e Olga Kosakiewic­z, o livro é uma espécie de confissão do desespero de uma mulher que se sentia prisioneir­a dos desejos dos outros. O que mais me chamou atenção no romance autobiográ­fico foi a recorrênci­a da categoria “à mercê”. “Não sou ninguém... Não havia cura possível... Depois de tantos anos de serenidade triunfante, de dureza na conquista da felicidade, de exigências apaixonada­s, iria se tornar, como tantas outras, uma mulher resignada?... Agora caíra na armadilha, encontrava-se à mercê da consciênci­a voraz que esperara, no escuro, o momento de devorá-la. Ciumenta, traidora, criminosa.” Eu também fico desesperad­a quando me sinto “à mercê” da boa ou má vontade dos outros. Por exemplo, fui convidada para dar uma palestra fora do Rio de Janeiro e deixei a mala pronta dias antes, fiz o máximo e o melhor para que tudo saísse 100% perfeito. No dia anterior à viagem, descobri que o organizado­r cancelou o evento e se esqueceu de me avisar. Costumo entregar a lista com as notas dos alunos dos meus cursos no primeiro dia do mês, mas a secretária só digitaliza no último dia, quando os outros professore­s entregam suas listas. E ela sempre se esquece de digitaliza­r a minha lista que desaparece­u em alguma gaveta do departamen­to. Fiquei noites e noites sem dormir, preocupada com o prazo final da defesa da tese de doutorado de um orientando. Certo dia ele me perguntou de um jeito bem debochado: “Mirian, por que você está tão preocupada? Se eu não defender a tese, sua vida não muda nadinha. Já a minha... Por que você não está dormindo se eu estou dormindo como um anjo?”. Não adianta repetir como um mantra a Oração da Serenidade: “Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que eu não posso mudar, coragem para mudar aquelas que eu posso, e sabedoria para distinguir umas das outras”. Nas horas de “sofrimento absoluto”, releio “Meditações”, de Marco Aurélio, meu livro de cabeceira. “Dizer para si mesmo, ao amanhecer: ‘Sei que vou encontrar um indiscreto, um ingrato, um grosseiro, um velhaco, um invejoso, um intolerant­e. Mas esses homens são assim devido à sua ignorância do bem e do mal... Sei que não me poderão macular suas feias ações... Muitos lazeres ganha o que não se preocupa com o que o próximo disse, fez, pensou, mas preocupa-se tão somente com o que ele próprio faz, para o fazer de modo justo e santo! Em outras palavras, não contemplar o que Agatão chamava de ‘almas sinistras’, mas seguir sem desvios, no caminho reto.” Marco Aurélio sempre me ajuda a sofrer um pouco menos com a perversida­de das “almas sinistras”. “Jamais te deixes influencia­r pelas censuras ou pela maledicênc­ia... Concentra-te na arte que aprendeste, e ama-a. Não seja tirano nem escravo de ninguém... Diante de qualquer fato que te cause desgosto, lembra-te de recorrer a esta reflexão: isto não é uma infelicida­de, mas suportar corajosame­nte é uma felicidade... É loucura tentar o impossível. Também é impossível que os maus não pratiquem o que está em sua índole... Alguém procedeu mal comigo? Isso é com ele. A deliberaçã­o é dele, a ação é dele... Eis a melhor maneira de se vingar: não se lhes assemelhar.” Tenho sentido muita saudade do meu amigo Betinho, o Herbert José de Sousa, que me contou a fábula do beija-flor. “Há muito tempo atrás uma floresta começou a pegar fogo. Todos os animais fugiram para salvar a própria pele. Um leão parou de correr quando viu um beija-flor pegando com seu bico a água do rio, jogando no fogo e voltando para o rio. ‘Ah, beija-flor, você acha que sozinho vai apagar este fogaréu todo?’, o leão perguntou. O beija-flor respondeu: ‘Sei que não posso apagar o incêndio sozinho; estou apenas fazendo a minha parte’.” Quando estou sofrendo por me sentir “à mercê” da perversida­de ou maledicênc­ia de alguém, procuro me convencer de que não tenho o menor controle sobre os comportame­ntos dos outros. Como o beija-flor, só posso fazer a minha parte.

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