Folha de S.Paulo

Amizade no mar, no céu e nas trincheira­s

‘Mestres do Ar’ completa ótima trilogia do diretor Steven Spielberg sobre soldados americanos na Segunda Guerra

- Mauricio Stycer Jornalista e crítico de TV, autor de ‘Topa Tudo por Dinheiro’. É mestre em sociologia pela USP

A obsessão de Steven Spielberg pela Segunda Guerra Mundial é tão grande que transborda do cinema para a televisão. Além dos filmes que fez inspirados em situações e personagen­s que viveram a guerra, como “O Resgate do Soldado Ryan” e “A Lista de Schindler”, o cineasta está por trás de uma poderosa trilogia feita para a TV. São três minissérie­s, lançadas ao longo de duas décadas, que contam histórias de soldados no campo de batalha. A primeira e mais bem-sucedida é “Band of Brothers”, de 2001. Em 2010, foi ao ar “The Pacific”. “Mestres do Ar”, lançada este ano, completa o trio. Em parceria com Tom Hanks, Spielberg ergueu um painel que vai além da apologia do heroísmo americano na guerra. As três séries, que totalizam 29 episódios, se baseiam em livros de memórias e pesquisas de historiado­res sobre a saga de soldados no front. Elas contam histórias de erros, desorganiz­ação e despreparo das forças militares americanas. Mostram como os soldados foram enviados para missões que os oficiais sabiam que seriam mortais. Expõem o desespero de jovens de 18 anos diante da morte iminente. São essas dificuldad­es que reforçam os laços de companheir­ismo dos soldados —o tema principal das três séries. Ninguém nunca diz “obrigado” ao colega de trincheira que o salvou, mas os vínculos se estabelece­m de forma perene. O impacto e o realismo das cenas iniciais de “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), que reproduzem o desembarqu­e das tropas americanas na Normandia, levaram a HBO a apostar em “Band of Brothers”. Lançada em 9 de setembro de 2001, foi a minissérie mais cara produzida até então. Com orçamento de US$ 120 milhões — ou cerca de R$ 600 milhões—, conta a história de uma companhia de paraquedis­tas que passa por um treinament­o intenso antes de rodar a Europa —França, Holanda, Bélgica e Alemanha— em batalhas sangrentas, até o fim da guerra. Por causa dos atentados de 11 de Setembro, dois dias após o lançamento, a HBO cancelou a promoção da série, o que atenuou muito o seu impacto, mas não evitou que “Band of Brothers” ganhasse o Emmy e o Globo de Ouro no ano seguinte. Ainda que tenha um protagonis­ta, o major Richard Winters, vivido por Damian Lewis, cada episódio é centrado em algum militar da companhia. “Bastogne”, o sexto episódio, que acompanha o médico do grupo em ação defensiva numa floresta na Bélgica, sob forte neve, é uma obra-prima. A aclamação a “Band of Brothers” levou a HBO a apostar, uma década depois, em “The Pacific”. Como indica o título, acompanha a trajetória de dois soldados e um sargento de uma divisão da Marinha americana na guerra contra o Japão. É a mais soturna e pesada da trilogia. As batalhas são intermináv­eis, e o desespero dos soldados provoca agonia. É para quem tem estômago forte. “Mestres do Ar”, cujo último episódio foi exibido há duas semanas, reflete os novos tempos da televisão. Spielberg e Hanks bateram na porta da HBO, hoje Max, mas não tiveram sucesso. Quem bancou o orçamento de US$ 250 milhões —ou cerca de R$ 1,2 bilhão— foi a Apple. Aliás, desde o ano passado, a Netflix exibe “Band of Brothers” e “The Pacific”. Com três estrelas no elenco, Austin Butler, Callum Turner e Barry Keoghan, a saga conta a história de aviadores que sofreram mais derrotas do que vitórias nos céus da Europa. O despreparo das equipes diante da força aérea alemã torna as missões sangrentas. Mais uma vez, salta aos olhos a qualidade da produção e dos efeitos especiais, que recriam o desespero das batalhas aéreas. Sintonizad­a com os dias de hoje, “Mestres do Ar” é a única da trilogia que aborda a segregação racial que havia na época no Exército americano. Para quem gosta do gênero, recomendo assistir à trilogia na ordem de exibição.

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