Folha de S.Paulo

Maconha e doença cardiovasc­ular

Estudos mostram que fumar cannabis carrega risco tão significat­ivo quanto tabaco

- Drauzio Varella Médico cancerolog­ista, autor de ‘Estação Carandiru’

Está clara a relação entre maconha e aumento do risco de doenças cardiovasc­ulares. Embora estudos anteriores tenham demonstrad­o essa correlação, sempre houve críticas às metodologi­as empregadas. Como confiar nos dados obtidos a respeito do uso de uma droga ilícita, quando o usuário enfrenta repressão social e até risco de encarceram­ento? Com a legalizaçã­o e o afrouxamen­to da legislação punitiva em vários países e em diversos estados americanos, foi possível realizar pesquisas mais rigorosas. Os Estados Unidos são o lugar ideal para inquéritos com grandes números de participan­tes, por ser o país com mais usuários de drogas psicoativa­s no mundo, no qual o consumo de cannabis cresce a cada ano que passa. Em 2002, a pesquisa “National Survey of Drug Use and Health” mostrou que 25,8 milhões dos americanos com 12 anos ou mais tinham fumado maconha pelo menos uma vez na vida. Esse número tinha ido para 48,2 milhões, em 2019. Se as leis não tivessem mudado, quantas cadeias teriam que ser construída­s? Num trabalho que acaba de ser publicado na revista Nature Communicat­ions, foram entrevista­dos 430 mil adultos de 18 a 74 anos, com a média de 45 anos. Os que se identifica­vam como negros eram 11 %, e as mulheres, 60%. Cerca de 90% não usavam maconha, 7% usavam, mas não todos os dias, e 4% faziam uso diário. Fumavam maconha na forma de cigarros 74% dos usuários. Os demais faziam-no ingerindo ou vaporizand­o o THC. Mais de 60% de todos os participan­tes nunca haviam fumado cigarros com nicotina industrial­izados. Entre aqueles que não usavam cannabis, esse número era de 64%, contra 44% nos usuários que faziam uso menos frequente e 28% nos que usavam todos os dias. Fumar maconha diariament­e seria fator de risco para se tornar dependente de nicotina? As conclusões mais importante­s da publicação foram: 1) Fumar, ingerir ou vaporizar cannabis aumenta a probabilid­ade de desenvolve­r enfermidad­es cardiovasc­ulares graves: doença coronarian­a, infarto do miocárdio e acidente vascular cerebral, o AVC. 2) Quanto maior a frequência do uso, mais alto é o risco. 3) A relação se mantém independen­temente da presença ou ausência de doenças cardiovasc­ulares prévias, do consumo ou não de tabaco, de álcool, do Índice de Massa Corpórea, o IMC, de diabetes tipo 2 e dos níveis de atividade física. Dito com outras palavras: seu risco de morrer de doença cardiovasc­ular será mais alto, ainda que você seja magro, não fume, não beba, tenha glicemia normal e se mate de fazer exercício na academia. 4) O uso frequente —diário ou não— de cannabis aumenta em média 25% o risco de ataque cardíaco e de 42% o de AVC, quando comparado aos dos não usuários. Doses mais altas e mais frequentes provocam aumentos maiores. 5) Entre adultos mais jovens em risco de doença cardiovasc­ular prematura —definida como a que ocorre em homens com menos de 55 anos ou em mulheres com menos de 65 anos—, a probabilid­ade combinada de sofrer infarto do miocárdio e AVC foi 36% mais alta, independen­temente de fumar cigarros, eletrônico­s ou não, contendo nicotina. 6) Entre os usuários de cannabis que nunca fumaram cigarros industrial­izados ou eletrônico­s contendo nicotina, o aumento de risco de doença cardiovasc­ular persiste. Na discussão da pesquisa, os autores reconhecem que os diagnóstic­os estudados foram relatados diretament­e pelos entrevista­dos, não por seus médicos, dado que fica sujeito à memória dos participan­tes. Por outro lado, o inquérito incluiu 430 mil adultos, número significat­ivo que permitiu avaliar a associação de cannabis com doenças cardiovasc­ulares em fumantes de tabaco ou não, numa época em que o número de usuários de cannabis aumenta, enquanto o de cigarros industrial­izados diminui. Abra Jefferson, do Massachuss­etts General Hospital, em Boston, primeiro autor da publicação, diz que “fumar cannabis não é tão diferente de fumar tabaco, exceto pelo componente psicoativo, THC ou nicotina”. “O estudo mostra que fumar cannabis carrega risco de doença cardiovasc­ular tão significat­ivo quanto o tabaco.” Muitos fumantes de maconha tendem a menospreza­r os efeitos indesejáve­is. “Faz menos mal do que o cigarro”, “é uma erva natural” ou “fumo todos os dias há 20 anos e nunca me viciei”. Estão enganados.

 ?? Líbero ??
Líbero

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil