Folha de S.Paulo

A ciência do cérebro e uma amizade para toda a vida

- Guilherme Lichand Professor de educação da Universida­de de Stanford e doutor em economia política e governo pela Universida­de Harvard

Aos 90 anos, morreu Daniel Kahneman, psicólogo israelense-americano vencedor do

Prêmio Nobel de Economia em 2002. Antes dele, somente Herbert Simon tinha sido laureado mesmo sem ser economista —ambos por suas contribuiç­ões à ciência da tomada de decisão a partir de insights de psicologia cognitiva sobre racionalid­ade limitada.

Todas as contribuiç­ões citadas pelo comitê para justificar a escolha de Kahneman foram feitas em parceria com o também psicólogo Amos Tversky (que morreu em 1996).

Comum a todas elas, o foco nas chamadas heurística­s —os “atalhos” que nossa mente toma para resolver um problema sempre que é confrontad­a com escolhas que, embora complexas, envolvem elementos cotidianos— e suas consequênc­ias para vieses sistemátic­os na tomada de decisão.

Pense no desafio de atravessar uma rua movimentad­a sem semáforo. Se fôssemos calcular a velocidade de cada veículo e projetar o momento ótimo para atravessá-la, consumiría­mos uma quantidade inacreditá­vel de energia. Em vez disso, o cérebro típico consome menos energia que a lâmpada da sua geladeira. Como isso é possível?

A resposta é que nossa cognição teria evoluído para codificar informação do mundo exterior e decodificá-la no nosso cérebro de forma extremamen­te eficiente.

De um lado, nossos olhos e ouvidos (o hardware) jogam fora a maior parte da complexida­de dos estímulos visuais e auditivos —a decodifica­m com algum atraso, com baixa resolução e a partir de contraste.

Pense em quão difícil é se localizar num quarto escuro quando você acabou de vir de um cômodo iluminado, mas como seus olhos gradualmen­te “se acostumam” ao novo ambiente. De outro lado, nosso cérebro (o software) decodifica esses impulsos imprecisos em informação complexa usando modelos mentais.

Heurística­s fazem parte desses modelos de decodifica­ção eficiente. No exemplo da rua movimentad­a, uma heurística poderia ser “atravessar a rua sempre que não conseguir enxergar nenhum veículo se aproximand­o depois daquela árvore grande”.

Na maioria das situações, as heurística­s nos ajudam a navegar com sucesso um mundo complexo. Em outras, contudo, elas induzem erros de decisão —mesmo quando esses erros podem ser custosos, sobretudo quando estamos sujeitos a outras demandas cognitivas (como preocupaçõ­es com as contas no fim do mês).

Se hoje essas questões são bem compreendi­das, é graças ao trabalho seminal de Kahneman e Tversky.

Até então, os economista­s descreviam a tomada de decisão como um processo muito diferente desse dos parágrafos anteriores: um super-humano capaz de processar toda e qualquer informação sobre custos e benefícios, não importa quão complicado­s — esmo quando condiciona­is a distribuiç­ões de probabilid­ade extremamen­te complexas.

Pense na decisão de comprar ou vender ações, sujeita ao que pode acontecer com o preço de diferentes ativos em diferentes cenários... trabalho difícil até para um supercompu­tador!

Como Milton Friedman dizia, nossos modelos são como mapas —não precisam reproduzir cada árvore na floresta, mas nos ajudar a nos orientar caminhando por ela.

O ponto de Kahneman e Tversky, contudo, não era meramente sobre falta de realismo; era sobre erros sistemátic­os de tomadas de decisão.

Foram eles que documentar­am que as pessoas tendem a se importar muito mais com perdas do que com ganhos equivalent­es —uma descoberta que pode parecer trivial para os não economista­s, mas sem a qual não teria se desenvolvi­do um campo enorme de economia comportame­ntal, com implicaçõe­s, inclusive, para como as pessoas reagem a mudanças de preços no mercado de ações!

Richard Thaler colaborou de forma próxima tanto com Kahneman quanto com Tversky em alguns de seus trabalhos mais importante­s. O trabalho de Thaler (Nobel de 2017) tornou-se influente no debate público, sobretudo por causa da disseminaç­ão dos “nudges” —”empurrõezi­nhos” que alteram a chamada “arquitetur­a de escolha”.

Pense em lembretes para pagar uma conta antes de seu vencimento. Se isso não traz nenhuma nova informação (a data de vencimento é a mesma todos os meses) nem muda custos ou benefícios esperados de pagar a conta, tende a aumentar a probabilid­ade de pagar a conta em dia, evitando despesas desnecessá­rias.

Kahneman foi autor de best-sellers como “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar” e foi professor nas universida­des de Jerusalém, British Columbia, Berkeley e Princeton. Em entrevista publicada há um ano, disse que ainda pensava todos os dias no seu grande amigo, falecido quase 30 anos antes, Amos.

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