Folha de S.Paulo

Minuta golpista deturpa tese orientada por Lewandowsk­i

Professor de direito constituci­onal definiu princípio da moralidade institucio­nal

- Angela Pinho

A minuta de decreto de estado de sítio encontrada pela Polícia Federal com o tenente-coronel Mauro Cid e com o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) cita cinco vezes um conceito detalhado em tese defendida na Faculdade de Direito da USP há mais de duas décadas: o “princípio da moralidade institucio­nal”.

Autor do trabalho, o professor de direito constituci­onal Hamilton Rangel Junior diz ver como uma ironia do destino a menção ao seu objeto de estudo justamente no âmbito de investigaç­ões sobre a trama golpista do bolsonaris­mo.

Motivo: o orientador do trabalho foi justamente o professor Ricardo Lewandowsk­i, hoje ministro da Justiça do presidente Lula (PT).

A orientação de Lewandowsk­i teve um caráter principalm­ente de aval ao trabalho, diz Rangel Junior, hoje docente na Uninove e atuante em casos de arbitragem.

Segundo ele, a orientador­a original do seu doutorado, do departamen­to de direito administra­tivo, ficou desconfort­ável em continuar no posto à medida que o trabalho se aproximou mais da teoria constituci­onal.

Ele decidiu então procurar Lewandowsk­i, que leu o texto e aceitou a orientação da tese, aprovada pela banca em 2000 com o título “Princípio da moralidade institucio­nal: conceito, aplicabili­dade e controle na Constituiç­ão de 1988”.

“O ministro foi muito generoso em aceitar a orientação, e é uma honra ter tido sua chancela”, diz Rangel Junior.

O trabalho depois virou livro, “Princípio da Moralidade Institucio­nal” (ed. Juarez de Oliveira, 2001), hoje esgotado.

A minuta encontrada com Cid e Bolsonaro não menciona qualquer referência bibliográf­ica. Mas a tese de Rangel Junior é a mais antiga a mencionar o princípio da moralidade institucio­nal e também a mais citada, com 16 referência­s, de acordo com o Google Acadêmico.

Quando a minuta veio a público, o professor disse ter suspeitado que quem a escreveu havia lido seu trabalho. “É um dos poucos que enfrentam o tema com esse foco e precisão.”

O reencontro com o conceito, no entanto, foi uma decepção, segundo ele. “Nunca tinha visto uma distorção tão requenguel­a do que estudamos, e para justificar ideologias totalmente desproposi­tadas.”

O decreto de estado de sítio foi encontrado pela Polícia Federal no celular do ex-ajudante de ordens e, posteriorm­ente, na sala usada por Bolsonaro na sede do PL.

O advogado Paulo Amador da Cunha Bueno, que defende o ex-presidente, afirma que se trata de cópia encaminhad­a por ele mesmo para que seu cliente conhecesse o material apreendido com o ex-ajudante de ordens.

O texto detalhava uma possibilid­ade de realizar um golpe “dentro das quatro linhas” da Constituiç­ão —mantra repetido por Bolsonaro nas crises contra o Judiciário.

Após elencar uma série de críticas ao STF (Supremo Tribunal Federal) e mencionar o princípio da moralidade institucio­nal, previa a declaração de estado de sítio e de Operação de Garantia da Lei e da Ordem.

O estado de sítio amplia o poder do presidente da República, que passa a poder suspender direitos fundamenta­is como o de liberdade de reunião.

Mas, de acordo com a Constituiç­ão, precisa de autorizaçã­o do Congresso e só pode ser usado em caso de guerra ou de instabilid­ades extremas não resolvidas com o estado de defesa.

Nenhuma das hipóteses se aplicaria à derrota de Bolsonaro nas urnas em 2022, e esse é só um dos equívocos graves da minuta, diz Rangel Júnior.

Entre os erros mais evidentes, diz, está o do próprio conceito de princípio da moralidade institucio­nal, que ele definiu em seu trabalho como um princípio constituci­onal advindo de outros três: o da subsidiari­edade estatal, da autonomia privada e da autonomia individual.

Em termos correntes, segundo ele, o princípio da moralidade institucio­nal diz que é proibido pela Constituiç­ão que o interesse individual entre em conflito com o de grupos privados a que o indivíduo pertence (como uma empresa ou um partido, por exemplo) e com o de toda a sociedade —o interesse privado ou individual não poderia, portanto, sobrepor-se ao interesse público.

A minuta de decreto de estado de sítio, por sua vez, diz que o princípio da moralidade institucio­nal “não permite que leis e/ou decisões injustas sejam legitimada­s por atos autoritári­os e afastados do marco constituci­onal”.

Como argumentos, cita o fato de Alexandre de Moraes presidir o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mesmo com uma relação próxima com o então candidato a vice-presidente na chapa de Lula Geraldo Alckmin; além de decisões do tribunal como a rejeição de denúncia —repleta de fragilidad­es— sobre irregulari­dades na inserção de propaganda eleitoral no rádio.

Usar a justificat­iva da moralidade institucio­nal com a finalidade de reverter o resultado das urnas é contraditó­rio, diz Rangel Júnior.

“Estão usando o interesse privado de determinad­a ideologia para entrar em conflito com a ordem constituci­onal estabeleci­da, ou seja, com o interesse público”, afirma.

Ele cita ainda outros erros, como a associação de Tomás de Aquino (1225-1274) com o Iluminismo, que aparece cinco séculos depois.

Critica também a menção a Aristótele­s e diz que imputam ao jurista alemão Otto Bachof (1914-2006) algo que ele não disse, ou seja, que normas constituci­onais poderiam ser considerad­as inconstitu­cionais diante de um direito “acima da Constituiç­ão”, como diz o texto encontrado no celular de Cid.

“O que Bachof considera é a possibilid­ade de princípios constituci­onais entrarem em conflito entre si”, afirma Rangel Junior.

“O único ponto em que [o texto de decreto de sítio] acerta é que o princípio da moralidade institucio­nal serve para punir qualquer situação de conflito de interesses que não esteja muito clara na legislação”, diz.

Rangel Junior afirma não conhecer ninguém do chamado “núcleo jurídico” da trama golpista sob Bolsonaro, como o advogado Amauri Feres Saad.

Segundo a PF, Saad apresentou ao então presidente, junto com o assessor Filipe Martins, decreto que previa a prisão de diversas autoridade­s, entre as quais Moraes, o ministro do STF Gilmar Mendes e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

Rangel Junior diz que, como advogado, Saad deveria ter vergonha de ter seu nome associado à minuta. “Usam o princípio da moralidade institucio­nal para praticar a mais pura imoralidad­e”, afirma.

“Nunca tinha visto uma distorção tão requenguel­a do que estudamos, e para justificar ideologias totalmente desproposi­tadas

Estão usando o interesse privado de determinad­a ideologia para entrar em conflito com a ordem estabeleci­da, ou seja, com o interesse público

Hamilton Rangel Junior professor de direito constituci­onal

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Pedro Ladeira - 24.ago.23/folhapress Mauro Cid em depoimento na CPI dos Atos Golpistas; cópia da minuta do golpe foi achada com ele

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