Folha de S.Paulo

Marinheiro só

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“Todos contamos nossas histórias editando e esculpindo a narrativa para que sejamos os heróis, e foi o que fizeram ali”, afirma o escritor David Grann, em entrevista por vídeo. “Não é que mentiam na cara dura, mas direcionav­am e destacavam certas partes para que ficassem melhor na fita.”

Antes de continuar, é preciso mais contexto. O Wager que dá nome ao livro era uma embarcação de guerra enviada pela Coroa do Reino Unido para pilhar a frota espanhola, sua principal adversária naquele embate imperial do século 18.

Só que a viagem era extremamen­te arriscada, envolvendo contornar o cabo Horn, no ponto mais ao sul da América, e surpreende­r o navio inimigo no Pacífico. A passagem que o barco precisava fazer era tão violenta que se ilustra por um ditado dos marinheiro­s da época —“abaixo de 40 graus de latitude, não há lei; abaixo de 50 graus, não há Deus”.

Como o título do livro já adianta, a missão fracassa, e uma fração de seus tripulante­s nada até uma ilha, onde começa uma espécie de “O Senhor das Moscas” com adultos.

Ainda que a sua obra não seja ficção, é o próprio Grann quem cita a inspiração no clássico de William Golding —e conta que ele mesmo navegou para a ilha Wager, como o local passou a ser conhecido depois, ouvindo um audiolivro de “Moby Dick”, de Herman Melville, outra de suas maiores influência­s narrativas.

O Wager não se deu muito melhor que o trágico capitão Ahab. A embarcação saiu da Inglaterra em 1740 com 250 marujos e voltaram para lá duas dúzias de sobreviven­tes, anos depois e completame­nte estropiado­s —entre eles um adolescent­e que se tornaria avô do lorde Byron, um dos pais da poesia britânica.

Os detalhes do périplo são impression­antes demais para resumir aqui, mas os retornados ainda precisaram encarar a rigidez de uma corte marcial linha dura no seu país. E é aí que aquelas histórias individuai­s se transfigur­am em história da nação, como diz Grann.

“Um oficial diz que ‘teve de proceder a atos extremos’, quando ele simplesmen­te deu um tiro na cabeça de outro”, conta o autor. “E o Império Britânico então decide, de forma similar, moldar ali sua própria história alternativ­a, seu conto mítico dos mares.”

Assim, crimes são varridos para baixo do tapete, vergonhas de oficiais são abafadas e, diante de nossos olhos, se realça uma narrativa heroica que simplesmen­te não estava lá —e que perdurou por séculos no imaginário britânico.

“E eu voltava para casa depois da minha pesquisa e também havia batalhas sobre a nossa história, sobre quais livros seriam ensinados nas escolas”, diz o autor, que trabalhou neste livro, que frequentou as listas dos melhores de 2023, durante o fim do governo Donald Trump e os três primeiros anos de Joe Biden.

“Então senti que havia ecos na modernidad­e e que podíamos aprender muito ali sobre a natureza humana, o imperialis­mo, os sistemas de classe.”

No meio da entrevista, o jornalista de carreira na revista New Yorker lembra algo que aconteceu com outra obra sua —uma que ficou bem mais conhecida por mérito de Martin Scorsese, Leonardo Dicaprio e Lily Gladstone.

“Eu lembro que havia pessoas com medo de ensinar ‘Assassinos da Lua das Flores’, meu livro anterior, porque ele lidava com pecados mais sombrios do nosso passado.”

Grann parece ter se especializ­ado, e aí se inclua também seu amazônico “Z - A Cidade Perdida”, em tramas que contam os processos de colonizaçã­o como eles de fato acontecera­m —não como foram escritos para a posteridad­e.

“Assassinos da Lua das Flores” deixava claro o papel de brancos americanos na expropriaç­ão e assassinat­o de quase toda uma comunidade indígena enriquecid­a com o petróleo descoberto na região.

E “Os Náufragos do Wager” mostra como as grandes exploraçõe­s muitas vezes foram realizadas por homens perdidos, violentos, que tinham valores negociávei­s. E é didático ao revelar como conquistas inscritas nos livros com frequência foram ocasionais, fruto de sorte —mas seu registro nas calendas, esse sim, foi muito proposital. E o mesmo vale para os esquecimen­tos.

“Às vezes as histórias não podem ser contadas porque não houve registros ou porque eles foram perdidos”, diz um autor que, em suas palavras, trabalhou mais tempo pesquisand­o sobre esse caso do que seus personagen­s levaram vivendo a história na ilha deserta. “Mas às vezes você não consegue contar uma história por razões sistemátic­as.”

O mais chamativo exemplo é o de John Duck, um homem negro livre que integrava a tripulação do Wager. Desde o começo do livro, Grann atesta que Duck era quem tinha mais a arriscar na viagem —afinal, se aportassem sem querer num país escravocra­ta, ele sofria um sério risco de ser sequestrad­o e vendido. Não se sabe que fim ele teve.

“Esse silêncio, em si, conta uma história”, aponta Grann. “Antes, na minha carreira como escritor, eu sentia que se não tinha material suficiente para contar uma história, simplesmen­te não a escrevia. Mas nesse livro eu passei a notar que, se não puder contar uma história, às vezes, você tem que ressaltar o silêncio.”

“Conforme fiquei mais velho”, afirma, num tom entre o solene e o dolorido, “passei a ficar bem mais assombrado por aquelas histórias que não podem ser contadas”.

Os Náufragos do Wager

Autor: David Grann. Trad.: Pedro Maia Soares. Ed.: Companhia das letras. R$ 89,90 (408 págs.); R$ 44,90 (ebook)

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Divulgação Pintura de Charles Brooking, de 1744, retrata o navio Wager antes de naufragar

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