Folha de S.Paulo

Renda e educação: no meio do caminho tem uma perda

Para supri-la, políticas de distribuiç­ão de riqueza

- Luiz Guilherme Piva Economista, mestre (UFMG) e doutor (USP) em ciência política e autor de “Ladrilhado­res e Semeadores” (Editora 34) e “A Miséria da Economia e da Política” (Manole)

Mesmo com as retinas fatigadas, é preciso sempre reler os dados de desigualda­de de renda e riqueza no Brasil.

Sérgio Gobetti, da Fundação Getulio Vargas, analisa dados tributário­s de 2022 e demonstra que as 15.366 pessoas do grupo do 0,01% mais rico da população adulta ganham por mês, em média, mais de R$ 2,1 milhões; que as mais de 154 milhões que formam os 95% da enorme base da pirâmide ganham, em média, R$ 2.300 por mês; e que o 1% mais rico (1,5 milhão de adultos) fica com 25% de toda a renda nacional.

Segundo o IBGE, em 2022 quase 32% dos brasileiro­s ganhavam por dia menos de R$ 35 (pobreza) e 6%, menos de R$ 11 (extrema pobreza). Mesmos percentuai­s de 2015 e 2013, respectiva­mente. Samuel Pessôa e outros tentam explicar a pobreza e a desigualda­de pela ótica da educação. Isto é, com mais estudo seria possível sair da pobreza e diminuir a desigualda­de. Essa é uma ideia falsa, que elude os motivos reais da pobreza e da desigualda­de e as trata como questão de oportunida­de e meritocrac­ia. É fácil verificar que, estudando muito, é até possível fugir da pobreza; mas que, para ser rico, não é necessário estudar muito. Basta olhar em volta.

Além do mais, maior escolarida­de não altera a desigualda­de e a concentraç­ão de renda e riqueza —a menos que se aceite que um diploma permite auferir patrimônio imóvel e financeiro tal qual o que tem sido acumulado e transmitid­o pelos ricos por meio de rígidos mecanismos estruturai­s e históricos. Marcelo Medeiros, da Universida­de Columbia, mostra essa falácia (de que mais educação melhoraria a distribuiç­ão de renda) em artigo recente.

Mais do que falácia, trata-se de apofenia. Bombeiros não causam incêndios, estes é que atraem aqueles ao local. Pouca educação não concentra a renda: concentraç­ão de renda é que debilita a educação.

Vejamos. Os dados do IBGE são piores na população até 14 anos.

Nesse universo, 49% vivem na pobreza e 10%, na extrema pobreza —como em 2013. Eis a perda: gerações sucessivas de crianças em condições indignas de vida. Pois bem, no mesmo ano de 2022 o resultado do Pisa, da OCDE, que avaliou 690 mil estudantes de 15 anos em 81 países, mostra o Brasil em 65º lugar no exame de matemática, área em que 70% de nossas crianças estão abaixo do nível considerad­o básico para participar plenamente da sociedade, com entendimen­to de conceitos cotidianos. Nas demais áreas nossas notas também foram muito baixas.

As médias dos dez países mais bem colocados foram 528, 506 e 527 em matemática, leitura e ciências, respectiva­mente. As notas do Brasil foram 379, 410 e 403. Ou seja, as diferenças entre as médias daqueles países e as notas do Brasil são de 149, 96 e 124 pontos. Já as notas do Brasil superam as médias dos dez países mais mal avaliados em apenas 30, 55 e 38 pontos. O desempenho do Brasil tem se mantido nesse patamar há dez anos.

Essas gerações de crianças não terão condições de estudar nem de aprender o suficiente para obterem cidadania digna. Elas têm que ter acesso, sim, pelo maior tempo possível, a toda a educação da mais alta qualidade. Mas, sem políticas estruturai­s de distribuiç­ão de renda e riqueza, isso não será factível. Seguiremos afundando no atraso educaciona­l —e o Pisa será apenas a ponta do Titanic.

Porque tem uma perda no meio do caminho.

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Claudia Liz

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