Folha de S.Paulo

O mundo é dos broncos

País entra e sai da pancadaria mundial, só para continuar no mesmo lugar

- José Henrique Mariante

Morreu O.J. Simpson, o jogador de futebol americano que se transformo­u em estrela de muitos comerciais de TV e do cinema bobo que divertia os anos 1980. Nos 90, ele matou a ex-mulher e o rapaz que a acompanhav­a com requintes de crueldade. Ou não matou, pois assim decidiu um júri no chamado “julgamento do século”, em que o nome Kardashian, de um dos advogados, pela primeira vez ganhou proeminênc­ia, e até o magistrado ficou pop, com direito a fã clube.

Parece apenas curiosidad­e em uma semana que teve de Elon Musk provocando Alexandre de Moraes, o Judiciário e o governo Lula, sopro na brasa golpista e desesperad­a por anistia do bolsonaris­mo, a Arthur Lira enterrando o PL das Fake News e acusando rival de plantar notícia nos jornais, após fracasso em votação corporativ­a no Congresso.

Como, porém, avaliar novas versões da série antes de rememorar o impacto do primeiro episódio, um dos momentos mais marcantes da história da mídia americana, em tempos em que ela pesava muito mais em âmbito mundial.

Em 17 de junho de 1994, diante de uma montanha de evidências e um longo acumulado de violência doméstica, foi decretada a prisão de Simpson, que não se entregou. Empreendeu fuga a bordo de um Ford Bronco, conduzido por um amigo. No banco de trás, com uma arma apontada para a própria cabeça, ameaçava se matar se alguém chegasse perto. Por mais de uma hora e cem quilômetro­s de highways california­nas, acompanhad­o por uma passiva procissão de carros de polícia, Simpson reuniu 92 milhões de pessoas diante das então dominantes telas da TV, em uma transmissã­o ao vivo tão bizarra como histórica, que atravessou o cotidiano do país como uma avalanche.

Simpson, em um tempo em que ainda não existia redes sociais, viralizou sua própria desgraça. Era evidente que não havia saída sensata que não se entregar à polícia, mas, ainda assim, ele fez o país e, nas horas, dias e anos seguintes, o resto do planeta prestar atenção

em seu drama e até mesmo em sua desfaçatez. As vendas do Ford Bronco aumentaram.

O resto da história é conhecido e mudou a receita de como lidar com a imprensa. Se antes era preciso fazer força para convencer mídia e opinião pública a se inclinarem por uma versão, agora isso parecia apenas um detalhe diante da força de seu protagonis­ta.

O personalis­mo ganhou força com as redes sociais. Ali alguém simplesmen­te é alguma coisa, não importa muito o que fez, faz ou deixa de fazer. Nada mais natural que próceres da intolerânc­ia brilhem nessa terra de ninguém ou que os algoritmos só trabalhem para os fortalecer. Três décadas depois do piloto da série, há milhões de Simpsons se degradando na internet por poder. A maioria, por migalhas.

Rosebud

Aquela imprensa ostensiva não existe mais, seria tentador concluir. Em alcance de audiência e peso econômico faz sentido. O que não bate com essa história é o aparente fetiche de endinheira­dos com o jornalismo. Após mais de uma década, bilionário­s de vários matizes continuam brincando de ter ideias geniais e, em proporção parecida, prejuízos na mídia americana. No Reino Unido, o governo discute se é razoável um jornal ícone do país, o Telegraph, ser adquirido por fundos do Oriente Médio. Na França, Bernard Arnault, magnata do conglomera­do de luxo LVMH, já vai atrás de seu terceiro veículo, a Paris-match,

que nos dias atuais soa quase como uma excentrici­dade.

Musk, adversário frequente do francês nos rankings de riqueza pessoal, é apenas mais um a se envolver com o setor, com a diferença que partiu de vez para a nova mídia, em sua versão mais jornalísti­ca, o Twitter —qualidade que o X extinguiu. O fogueteiro repete também o objetivo de atropelar a política, como ocorre escancarad­amente na Hungria, mas também, ainda que como exceção, na França e em outros lugares. A crise no setor facilita as aquisições, mas pouco se discute ou se legisla sobre o assunto. Controlar a propagação de notícia falsa e o risco de censura são aspectos do problema, há mais em jogo.

Preocupa, mas não surpreende, o presidente da Câmara retirar a discussão da pauta.

Vazado

Sites amanhecera­m com títulos sobre a tibieza de Lira na votação que manteve preso o deputado Chiquinho Brazão, um dos acusados de mandar matar Marielle Franco e Anderson Gomes. Horas depois, na mesma quinta-feira (11), o presidente da Câmara acusou o ministro Alexandre Padilha de vazar a avaliação “aos grandes jornais”. A Folha perdeu a chance de explicar em seu relato se a queixa procedia.

Como na novela Petrobras, enquanto Lula 3 patina, a imprensa parece trocar apuração por recados, servindo de veículo para intrigas fabricadas e fofocas. E o país continua como antes, sem sair do lugar.

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Carvall

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