Folha de S.Paulo

Politizaçã­o de casos Brazão e Musk ofusca discussão jurídica sobre STF

Episódios conduzidos na corte envolvem interpreta­ções complexas que ficam em segundo plano

- Renata Galf

Episódios recentes envolvendo o STF (Supremo Tribunal Federal), como a prisão preventiva do deputado federal Chiquinho Brazão e a inclusão do dono do X, Elon Musk, no inquérito das milícias digitais suscitam questionam­entos jurídicos, que têm, entretanto, ficado em segundo plano, ofuscados pelo embate político levantado por grupos à direita e à esquerda.

Brazão foi preso em março por ordem do ministro do STF Alexandre de Moraes sob suspeita de ser um dos mandantes do assassinat­o da vereadora Marielle Franco (PSOL-RJ). Na última quarta-feira (10), por 277 a 129 votos, a Câmara aprovou a manutenção da prisão.

No debate político, de um lado a direita disse temer a criação de um precedente que pudesse ser usado no futuro e queria, com eventual soltura do parlamenta­r, mandar um recado ao Supremo. De outro, parlamenta­res da esquerda defenderam que Brazão seguisse preso, clamando por justiça e contra a impunidade.

A decisão do ministro Alexandre de Moraes tem paralelos com a prisão do senador Delcídio do Amaral (então no PT-MS), ordenada em 2015 pelo então ministro do Supremo Teori Zavascki no contexto da —àquela altura ainda aclamada— Operação Lava Jato. Apesar das diferenças entre os dois casos, ambas as detenções levantam o debate sobre como o STF interpreta a Constituiç­ão, que diz que os membros do Congresso “não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançáv­el”.

Também quanto à inclusão de Elon Musk como investigad­o no inquérito no STF, a discussão ficou restrita à polarizaçã­o política. Assim como em outros casos em que tomou decisões controvers­as, neste episódio o ministro Moraes não foi alvo de críticas da esquerda.

Na direita, por outro lado, o empresário que disse que descumprir­ia decisões judiciais brasileira­s foi aclamado e tratado como herói. Em postagens no X, Musk também chegou a questionar Moraes quanto ao porquê de “tanta censura no Brasil” e defendeu o impeachmen­t do ministro.

Em paralelo, ministros do STF voltaram a se manifestar fora dos autos, inclusive para posicionam­entos sobre regulament­ação das redes sociais.

Ficaram sem serem debatidas a instauraçã­o de mais um inquérito de ofício e sua distribuiç­ão sem sorteio para a relatoria de Moraes.

Juliana Cesario Alvim, professora de direito da UFMG (Universida­de Federal de Minas Gerais) e da Central European University, avalia de modo geral que, ao passo que a corte construiu uma espécie de jurisprudê­ncia de emergência para lidar com ameaças à democracia, é preciso estabelece­r limites.

“É importante que isso seja demarcado. O que é o excepciona­l? E o que é o excepciona­l que corre risco de virar cotidiano?”, questiona.

O professor de direito da USP (Universida­de de São Paulo) Rafael Mafei vê uma instrument­alização da pauta da liberdade de expressão por parte de Musk e ressalta que o empresário não pode descumprir decisões tampouco ameaçar pessoas.

Ele não vê, no entanto, que nos posts de Musk já haveria elementos justifican­do relevância criminal.

Já no caso da prisão do deputado, Mafei entende que, ainda que seja possível debater a argumentaç­ão jurídica do caso, a análise da Câmara quanto a prisão é o aspecto mais importante a ser respeitado e que ele carrega uma dimensão política.

Parte dos deputados defendia a soltura de Brazão, sob o argumento de que Moraes tem violado prerrogati­vas de parlamenta­res.

Ao comunicar o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sobre a prisão de Brazão, o ministro afirmou que ela se dava “em face de flagrante delito pela prática do crime de obstrução de Justiça em organizaçã­o criminosa”.

A professora de direito penal da FGV Direito SP Raquel Scalcon vê semelhança­s entre os casos de Delcídio e Brazão.

“A discussão por trás desse caso, assim como o do Delcídio, é uma interpreta­ção sobre o próprio crime de obstrução de Justiça”, diz. “A depender de como eu interpreto a consumação do crime, eu posso dizer que a flagrância acontece a todo momento ou não.”

Apesar de citar o artigo desse crime em sua decisão, o ministro não parece desenvolve­r a argumentaç­ão sobre por que seria um caso de flagrante. Também não ficam claros quais fatos o ministro considerou para entender que houve obstrução de Justiça.

No entendimen­to da PF, a investigaç­ão do homicídio de Marielle foi talhada para ser natimorta devido a um ajuste prévio dos autores com quem seria responsáve­l pela apuração de homicídios no Rio.

A prisão de Brazão teve como base a delação do ex-pm Ronnie Lessa, acusado de ser o executor do crime. Reportagem da Folha mostrou que há lacunas quanto à apresentaç­ão de provas de corroboraç­ão sobre os relatos do delator.

Em 2015, com ordem do Supremo contra o líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral, pela primeira vez desde a redemocrat­ização um senador foi preso em exercício de mandato.

O político era acusado de obstruir as investigaç­ões sobre a Lava Jato, constando como prova uma gravação dele em conversa com terceiro. O então relator das ações da operação na corte entendeu que no caso do então senador havia um estado de flagrância.

“Nos dois casos, me parece que há uma ginástica [interpreta­tiva] para estender a consumação do crime de obstrução de Justiça”, avalia Tatiana Badaró, advogada criminalis­ta e doutora em direito pela UFMG.

Ela diz, porém, que há uma dificuldad­e para entender a lógica usada na decisão sobre o deputado Brazão, devido à falta de identifica­ção dos atos concretos que justificar­am a obstrução de Justiça.

“Sem saber que atos são esses, eu não consigo saber quando eles ocorreram e se eles ainda estavam ocorrendo”, diz.

Segundo ela, na ideia de crime permanente relacionad­a ao crime de obstrução, é preciso que haja uma permanênci­a —que ainda esteja sendo praticado. Uma segunda alternativ­a, que ela entende que talvez tenha sido a lógica do ministro Alexandre de Moraes, é a de que os fatos que configurar­iam obstrução teriam ocorrido no passado, mas continuam gerando efeitos até hoje.

Já ao enfrentar o requisito de crime inafiançáv­el, Moraes cita a decisão de Teori Zavascki sobre Delcídio como precedente.

O ministro usou como fundamento a regra que diz que também não pode ser concedida a fiança nos casos em que estiverem presentes os motivos que autorizam a prisão preventiva.

Raquel Scalcon, da FGV, diz que essa interpreta­ção também acaba por ampliar a regra constituci­onal sobre a restrição de prisão parlamenta­r, ao não considerar apenas o rol de crimes inafiançáv­eis, entre os quais estão os crimes dolosos contra a vida, tortura, terrorismo e racismo.

“Se eu fico sempre excepciona­ndo uma regra, com o tempo ela na verdade deixa de ter uma função de ordenação e de segurança jurídica. Ela morre, de certo modo”, diz.

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O ministro Alexandre de Moraes, do STF, que ordenou a prisão em flagrante do deputado Chiquinho Brazão por suspeita de obstrução de Justiça, mantida pela Câmara dos Deputados, e também incluiu o 3 dono do X, Elon Musk, em inquérito que apura milícias digitais depois de ter sido chamado de ditador por ele
Lukasz Glowala - 22.jan.24/reuters 3 O ministro Alexandre de Moraes, do STF, que ordenou a prisão em flagrante do deputado Chiquinho Brazão por suspeita de obstrução de Justiça, mantida pela Câmara dos Deputados, e também incluiu o 3 dono do X, Elon Musk, em inquérito que apura milícias digitais depois de ter sido chamado de ditador por ele
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Bruno Santos - 11.abr.24/folhapress 1
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Zeca Ribeiro - 1.dez.21/divulgação Câmara 2

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