Folha de S.Paulo

Uma grande leitura, a Revista Brasileira

Atual e erudita, ela vai do primeiro poeta à inteligênc­ia artificial

- Elio Gaspari Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles “A Ditadura Encurralad­a”

Está na rede, grátis como um arco-íris, a última edição da Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, editada pela escritora Rosiska Darcy de Oliveira. São 192 páginas de cultura na veia.

Tem de tudo. José Paulo Cavalcanti Filho conta que o primeiro poeta brasileiro não foi Bento Teixeira, publicado em 1601, mas o jesuíta Bartolomeu Fragoso, descoberto pelo historiado­r Victor Eleutério. Sua poesia foi preservada em 1592 pelo tribunal da Inquisição, que o excomungou e condenou ao degredo. Isso para o século 16. Para o século 21, a revista publica cinco artigos sobre a vida virtual.

Para todos os outros séculos, surge a figura de Alberto da Costa e Silva, o historiado­r, poeta e diplomata morto em novembro passado. São dois textos de uma preciosa entrevista concedida em 2003 a Marina de Mello e Souza.

Costa e Silva (nada a ver com o marechal que jogou o Brasil no Ato Institucio­nal nº 5) foi um estudioso da História que liga o Brasil à África. Tendo sido embaixador na Nigéria e em Portugal, publicou seis livros sobre a África, o tráfico negreiro e a escravidão. Dois deles (“A Enxada e a Lança” e “A Manilha e o Libambo”) são essenciais para se saber que, na África dos séculos 16 ao 19, existia uma civilizaçã­o pujante. Num terceiro, “Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos”, contou a vida de Xaxá, o baiano que viveu no Benin, tornando-se o maior traficante do período. Ele morreu em 1849 e muito provavelme­nte foi um dos homens mais ricos do mundo.

Alberto Costa e Silva falava claro e convidava quem o ouvia a fazer o mesmo. Como o historiado­r inglês Eric Hobsbawn, expunha sua erudição com o estilo do ator americano Fred Astaire ao dançar: dando a impressão de que é fácil.

Por exemplo:

“Há maneiras africanas. Essa nossa tendência de falar da África como uma realidade única, como uma totalidade, serve, em última análise, para facilitar nosso entendimen­to e a nossa compreensã­o. Mas não há nada mais diferente de um axante do que um ibo ou um ambundo. [...] Tal qual ocorre na Europa”.

A Revista Brasileira coloca a História do país à disposição do leitor. Fernando Gabeira trata da internet, Ruy Castro fala do grande cronista João do Rio (1881-1921). Rosiska Darcy de Oliveira e Carlos Eduardo de Senna Figueiredo resgatam a memória de Mário Pedrosa (1900-1981), o jornalista e crítico de arte que padeceu na América Latina da segunda metade do século 20 como ativista da política e da vanguarda artística. Penou o exílio no Chile e no México.

A Revista Brasileira existe pelo trabalho de quem a faz e pela contribuiç­ão de quatro apoiadores: Arminio Fraga, Barbosa Müssnich Aragão Advogados, o banco Opportunit­y e a Faperj.

O PSDB não teve choro nem vela

Fechada a janela que permitia migrações partidária­s, o PSDB definhou. Perdeu todos os oito vereadores que tinha em São Paulo, a cidade onde nasceu e no estado que governou por 27 anos. Em São Paulo e em 11 outras capitais o PSDB não terá candidato a prefeito. É um caso raro de derrocada de um partido durante um período de liberdades democrátic­as.

Um dia essa derrocada será mais bem estudada, mas, ao lado do PT, o tucanato foi um partido que, bem ou mal, teve atividade cerebral além do aparelho digestivo. Definhou aos 36 anos depois de ter governado o Brasil de 1995 a janeiro de 2003. Sob a liderança de Fernando Henrique Cardoso, restabelec­eu-se o valor da moeda, modernizou-se a economia e cimentou-se o regime democrátic­o brasileiro.

Esse partido nasceu de uma costela (a melhor) do velho MDB, onde estavam políticos com ideias novas, moderadas e práticas. Era o tucanato de Franco Montoro, FHC, Mário Covas e Tasso Jereissati, um jovem de 39 anos ao assumir o governo do Ceará, em 1987. Intitula-se Partido da Social Democracia Brasileira e foi de fato um momento social-democrata na vida nacional.

No seu apogeu, nos anos de FHC, o PSDB teve como rival o Partido dos Trabalhado­res, e o Brasil vivia o conforto de uma disputa entre sociais-democratas e matizes da esquerda. Ao tempo da Revolução Francesa, a política parecia dividida entre a Montanha (mais radical) e a Planície (mais moderada), até que essa turma foi chamada de Pântano.

Durante o tucanato, qualquer brasileiro sabia a força de três partidos, o PSDB, o PMDB e o PT, com alguma noção do que cada um deles significav­a. Coincide com o definhamen­to do PSDB uma feira onde há 29 partidos. Salvo o PT, nenhum tem identidade programáti­ca. O Partido Liberal, que hospeda Jair Bolsonaro, tem a maior bancada de deputados e ganha uma estadia em Budapeste quem souber o que ele representa, além do antipetism­o.

Biden tem chances

Um sábio que nos últimos 30 anos acertou o resultado de todas as eleições presidenci­ais americanas assegura que Joe Biden tem fortes chances de derrotar Donald Trump.

Bullitt deu o Baile de Satan

Para quem decidir ler o romance “O Mestre e a Margarida”, de Mikhail Bulgakov:

Um dos capítulos mais divertidos do livro conta o “Baile de Satan”, uma festa delirante ocorrida em Moscou. O baile aconteceu em abril de 1935 nos piores anos do stalinismo e foi dado pelo embaixador americano William Bullitt.

Boa parte da elite bolchevist­a apareceu e pelo menos três dos convidados viriam a ser executados. O secretário de Bullitt soltou a imaginação e colocou na festa um ursinho (a quem um bolcheviqu­e deu champanhe na mamadeira), galos (um deles pousou na travessa de foie gras) e centenas de passarinho­s (que fugiram da gaiola). Bulgakov foi com a mulher.

Tremenda figura, de aparência satânica, esse William Bullitt (1891-1967). Formou-se em Harvard com John Reed, que viria a escrever “Os Dez Dias Que Abalaram o Mundo”, e casou-se com sua viúva.

Negociou a dívida russa com Lênin, escreveu um livro com Sigmund Freud e em 1938 ajudou a tirá-lo de Viena. Virou amigo de Franklin Roosevelt, cuja secretária namorou, e ganhou a embaixada em Paris. (Em Moscou ele havia namorado a bailarina favorita de Stálin).

Em 1940, quando Hitler atacou a França, Bullitt transferiu reservas de ouro da França para os EUA. No dia 12 de junho, durante o colapso do governo, virou prefeito de Paris por alguns dias. Em maio de 1944, alistou-se como major do Exército francês e em outubro, fardado, entrou de novo na embaixada, hasteando a bandeira americana que a governanta havia escondido.

Bullitt desencanto­u-se com a União Soviética. Em 1935, comparou-a à Alemanha nazista, “uma teocracia de ateus”. Cantou a pedra de uma aliança de Stálin com Hitler com três anos de antecedênc­ia.

Deve-se a Bullitt a afirmação factual de que comunistas comiam crianças. Em 1945, depondo no Congresso americano, um senador perguntou-lhe se havia canibalism­o na Rússia e ele respondeu:

— Eu vi a fotografia de um corpo de criança comido pelos pais.

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Juliana Freire

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