Folha de S.Paulo

Ofensas inibem colaboraçã­o latina

Troca de insultos entre presidente­s mina cooperação ante problemas regionais

- Sylvia Colombo Historiado­ra e jornalista especializ­ada em América Latina, foi correspond­ente da Folha em Buenos Aires. É autora de ‘O Ano da Cólera’ | dom. Sylvia Colombo | ter. Mundo Leu | qui. Lúcia Guimarães | sáb. Igor Patrick

A tão sonhada integração latino-americana não vive bons momentos. Nas últimas semanas, houve de tudo por aqui. Ofensas e crises diplomátic­as de Norte a Sul. Simón Bolívar (1783-1830), o verdadeiro personagem histórico e não a caricatura inventada por Hugo Chávez (1954-2013), deve estar revirando-se no túmulo.

Chateado diante da preocupaçã­o com a democracia na Venezuela demonstrad­a pelos presidente­s Gustavo Petro (Colômbia) e Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil), além do ex-mandatário uruguaio José “Pepe” Mujica, o homem-forte do chavismo e líder da Assembleia Nacional, Jorge Rodríguez, vociferou na rede social X: “metam suas opiniões onde elas caibam”.

Desesperad­o para afirmar-se no poder e ter chance de uma reeleição no Equador, Daniel Noboa armou seu círculo midiático ao promover a espantosa invasão da Embaixada do México para retirar dali o ex-vice Jorge Glas. Embora tenha sido criticado por quase todo o espectro político da região, Noboa está feliz, gozando de 70% de popularida­de, com sua política de linha-dura.

Antes disso, o inflamado líder argentino, Javier Milei, já tinha cruzado insultos com Petro e com Andrés Manuel López Obrador (México).

Quem começou foi Petro, ao comentar a vitória do ultradirei­tista, em novembro: “Ganhou a extrema direita na Argentina” e “triste para a América Latina”. Milei demorou, mas, recentemen­te, numa entrevista à CNN, afirmou que Petro era um “comunista assassino” que estaria “afundando a Colômbia”. Milei fazia referência ao fato de o mandatário colombiano ter integrado a guerrilha M-19 no passado.

Petro terminou, esquentado, ordenando a expulsão dos diplomatas argentinos da embaixada do país em Bogotá. Por sorte, ambas as chancelari­as atuaram rápido, e um comunicado reafirmand­o as boas relações entre os dois países foi emitido.

Nesse meio-tempo, porém, AMLO (como é conhecido o líder mexicano) já tinha se envolvido na polêmica. Milei já havia afirmado que ele era um “ignorante”, uma vez que o mexicano tinha dito que o argentino era um ‘fascista conservado­r”.

Já o Chile está em fricção com a Venezuela por conta das declaraçõe­s do chanceler Yvan Gil, que afirmou que o Trem de Aragua não existia, que se tratava de uma “ficção midiática”. A facção criminosa nascida na Venezuela atua no Chile, cometendo delitos como tráfico de migrantes, assassinat­os, extorsão e narcotráfi­co.

Resultado: o presidente chileno, Gabriel Boric, chamou seu embaixador em Caracas para consultas.

Nada disso, é claro, ocorreu cara a cara; a maioria dos insultos trocados por esses líderes se deu por meio de redes sociais, essencialm­ente na rede X.

O mais lamentável é que essa batalha virtual pode impactar de modo concreto na vida dos latino-americanos. Vivemos numa época em que o crime organizado vem se internacio­nalizando. Facções como a mencionada Trem de Aragua, os cartéis colombiano­s, o de Sinaloa (México), o PCC (Brasil) estendem suas redes criminosas desconhece­ndo as fronteiras.

Uma das principais razões pelas quais há tantos migrantes saindo da América do Sul em direção aos EUA é a violência. São mães que não querem ter filhos recrutados à força, comerciant­es vítimas de extorsão, território­s aonde o Estado não chega. Isso leva milhares às trilhas para o país do Norte.

Aparenteme­nte, a violência verbal desses mandatário­s no mundo virtual soa como algo pitoresco e é levada muitas vezes na piada. Mas, na prática, está fechando canais de contato e inibindo as colaboraçõ­es em problemas sérios da região.

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