Folha de S.Paulo

Amplos poderes, nenhuma base legal

Musk foi comedido em crítica à censura de Alexandre de Moraes

- Glenn Greenwald Jornalista, advogado constituci­onalista e fundador do The Intercept | dom. Bernardo Carvalho, Juliana de Albuquerqu­e, Glenn Greenwald

Elon Musk gerou intensa —e previsível— controvérs­ia ao criticar o regime de censura comandado por Alexandre de Moraes, ministro do STF. O foco da discussão foi qual deve ser o escopo ideal da liberdade de expressão e em quem se pode confiar para determinar que certas ideias não são permissíve­is.

A adesão da esquerda à ideia de que Moraes é confiável para decidir o que é ou não permissíve­l, verdade ou mentira, é bizarra.

Quando Moraes foi ministro da Justiça de Michel Temer (MDB), foi chamado de racista e corrupto por grande parte da esquerda brasileira. Sua indicação ao STF só escalou essa retórica: além de golpista, Moraes era fascista, racista, corrupto e mentiroso.

Em 2017, a conta oficial do PT publicou: “Na avaliação do petista [Wadih Damous], além de desprepara­do, Moraes é também ‘fascista e mentiroso’”. As acusações continuara­m em 2018, quando Moraes, por exemplo, votou contra o habeas corpus preventivo pedido por Lula.

Moraes exerce seus amplos poderes sem nenhuma base legal. Os defensores da censura tentaram repetidame­nte aprovar o PL das Fake News. Tendo falhado no Congresso, preferiram que o STF entregasse o poder a Moraes. Como descreveu este jornal em editorial comemorand­o a não aprovação do PL, o texto era movido por “um ímpeto censório” e Moraes “tem cometido não poucos abusos ao retirar contas de usuários do ar.”

A falta de base legal para as ordens de Moraes não para aí. Quando, em 2022, o STF deu a ele o poder de unilateral­mente exigir a remoção de postagens e o banimento de contas, a ministra Cármen Lúcia argumentou: “Não se pode permitir a volta da censura sob qualquer argumento”. Ela só votou a favor desses poderes por achar que as eleições de 2022 eram uma “situação excepciona­líssima”, mas enfatizou que esses poderes deveriam se esgotar em 31 de outubro de 2022, findo o pleito.

Moraes continua exercendo esses poderes mesmo passado o prazo. Desde então, ele repetidame­nte exigiu a remoção de postagens e o banimento de contas, inclusive de parlamenta­res democratic­amente eleitos, alguns campeões de voto.

Como podem aqueles que defendem esse status quo —um juiz não eleito, agindo sem base legal, silenciand­o parlamenta­res— afirmarem que estão agindo em defesa da democracia? Assim como não se pode combater a corrupção com métodos corruptos — uma lição básica da Lava Jato— não se pode proteger a democracia com métodos autoritári­os.

Não há regime fascista que proteja a liberdade de expressão ou deixe de usar o poder da censura. O impulso por trás do apoio a Moraes é a mentalidad­e, também fascista, de que “os fins justificam os meios”. Essa lógica de que as ameaças são sérias demais para que as liberdades normais sejam permitidas parece ter sido abraçada por setores da mídia e da esquerda com medo do bolsonaris­mo.

Ainda que o foco do debate tenha sido a liberdade de expressão, Moraes vem violando sistematic­amente outro direito fundamenta­l: o direito ao devido processo legal, previsto no artigo 5º da Constituiç­ão Federal. Esse direito proíbe qualquer punição judicial sem citação e conhecimen­to da acusação, arrolament­o de testemunha­s, elaboração de perguntas e igualdade entre acusação e defesa.

Em janeiro do ano passado, obtivemos e publicamos uma das ordens de censura sigilosas enviadas por Moraes. Ela obrigava seis redes sociais diferentes a banir imediatame­nte cerca de uma dúzia de brasileiro­s, entre eles parlamenta­res. É evidente que essa ordem viola frontalmen­te a Constituiç­ão: emitida em segredo, os usuários que tiveram contas banidas não receberam qualquer comunicaçã­o e nenhuma explicação foi dada sobre o que exatamente eles fizeram de errado.

O fato de os usuários não serem comunicado­s das acusações nem terem a oportunida­de de contestá-las é uma forma clara e extrema de censura. Pior ainda, a ordem exigia que as redes sociais mantivesse­m tudo em segredo, não podendo nem comunicar aos usuários que tiveram suas contas bloqueadas, e que fosse cumprida em um prazo de duas horas sob pena de vultosas multas diárias.

Muitos acharam que Musk exagerou ao dizer que as ordens de censura enviadas por Moraes ao X eram desprovida­s de explicaçõe­s e determinav­am que a empresa mantivesse tudo em segredo. Essa ordem, porém, mostra que ele não apenas falou a verdade como foi bastante comedido.

É compreensí­vel que Moraes e seus apoiadores prefiram manter as ordens em sigilo. Sua leitura evidencia seu teor autoritári­o: não apenas contra a liberdade de expressão, mas contra o direito ao devido processo legal, garantido pela Constituiç­ão Federal. É grave.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil