Folha de S.Paulo

Preposição sexual

O Timeleft, que permite jantar com desconheci­dos, é pura e simples devassidão

- Ricardo Araújo Pereira Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de ‘Boca do Inferno’

Agora é que o mundo está perdido. Eu sei que muita gente vem anunciando isso há bastante tempo, mas agora é que é.

Percebi que o apocalipse tinha chegado quando soube do novo aplicativo Timeleft, que é a maior pouca-vergonha que as novas tecnologia­s já nos proporcion­aram. Eu já conhecia o Tinder, contra o qual nada me move. Compreendo e respeito o desejo de transar com desconheci­dos. Mas o Timeleft é pura e simples devassidão.

Trata-se de um dispositiv­o que permite ir jantar fora com um grupo de desconheci­dos. Ninguém se conhece, à mesa. Olha a imoralidad­e. Em vez de escolher uma pessoa para comer, a gente escolhe uma pessoa para comer com. É essa preposição que estraga tudo. Faz falta um livro que seja uma combinação do “Kama Sutra” com a gramática e que elucide o público acerca das preposiçõe­s sexuais. Para que todo o mundo compreenda quais são as preposiçõe­s aceitáveis e quais são as absolutame­nte imorais.

Que caracterís­ticas procuramos num desconheci­do que desejamos comer? Duas ou três, apenas —ou talvez menos, consoante a dimensão do desejo. Por vezes cruzamo-nos com uma pessoa na rua e basta um gesto, um olhar, um decote. Mas gostaria de dizer quantas vezes avistei uma desconheci­da e pensei: ora, aqui está uma cidadã com a qual gostaria muito de ir a um jantar de degustação. Tenho essa contabilid­ade feita: foram zero vezes. Zero.

Às vezes, alguém organiza um jantar de amigos e uma das pessoas leva um desconheci­do. É com muita frequência embaraçoso —e é só um.

Agora imaginem uma mesa só com desconheci­dos. Descobrir, no fim das entradas, que não temos nada em comum com três deles. Ao meio da refeição, verificar que outros dois são irredimive­lmente chatos. Na hora da sobremesa, lamentar não ter ficado em casa com uma refeição congelada.

É a diferença radical entre o Tinder e o Timeleft. O que se pretende fazer no Tinder é quase sempre melhor com um desconheci­do do que sozinho; o que se faz no Timeleft é quase sempre melhor sozinho do que com um desconheci­do.

Creio que o mundo ainda terá salvação se alguém elucidar as pessoas sobre as vantagens do sexo e as desvantage­ns da comensalid­ade com desconheci­dos. Contatem-me. Mas não para jantar.

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Luiza Pannunzio

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