Folha de S.Paulo

O propagador da democracia

Biografia excelente detalha o percurso e as contradiçõ­es do pensador francês Alexis de Tocquevill­e (1805-1859), herdeiro da aristocrac­ia que dedicou sua vida e obra a defender os valores da democracia e da igualdade

- Por Paulo Henrique Cassimiro Professor do Departamen­to de Ciência Política da Uerj (Universida­de do Estado do Rio de Janeiro)

Quando iniciou sua viagem pela jovem República norte-americana em 1831, Alexis de Tocquevill­e levava consigo o peso da história francesa.

Pelo lado do pai, descendia de uma família de militares da Normandia; pelo lado da mãe, de uma longa dinastia de nobres que ocuparam posições de prestígio e poder na burocracia estatal da monarquia francesa.

Seu bisavô materno, Chrétien-guilhaume de Malesherbe­s —censor real que autorizou a publicação da enciclopéd­ia iluminista—, foi um dos advogados de Luís 16 após o início da Revolução Francesa, em 1789. Seu avô, o marquês de Rosambo, foi presidente do Parlamento de Paris, órgão máximo do Judiciário no Antigo Regime.

Sua tia casou-se com o irmão de François-rené de Chateaubri­and, o mais importante escritor francês da primeira metade do século 19. Em 1794 todos eles estavam mortos, enforcados ou guilhotina­dos pela revolução. Os pais de Tocquevill­e passaram 10 meses na prisão e foram salvos pela queda de Robespierr­e e dos jacobinos, em julho de 1794.

Nascido em 1805, Alexis de Tocquevill­e tinha tudo para ser um reacionári­o convicto, defensor da aristocrac­ia francesa contra o legado da revolução.

Todavia, sua viagem pela América significou uma experiênci­a definitiva para pensar o surgimento de um mundo político e social novo, cuja tendência à expansão representa­va o destino inexorável de uma civilizaçã­o que deixava para trás suas estruturas hierárquic­as e aristocrát­icas milenares e começava a se organizar a partir da reivindica­ção do princípio da igualdade.

Esse é o mundo que Tocquevill­e descreve em “A Democracia na América”, enorme e complexo relato de viagens publicado em dois volumes, em 1835 e 1840, que se tornou um texto definidor dos novos significad­os que atribuímos à velha palavra democracia.

É justamente a relação entre suas experiênci­as pessoais, intelectua­is e políticas e a escrita de seus textos mais importante­s que o historiado­r francês Olivier Zunz acompanha em “O Homem que Compreende­u a Democracia: A vida de Alexis de Tocquevill­e”.

A narrativa segue os anos de formação de Tocquevill­e, suas influência­s literárias e contatos pessoais, as razões para empreender a viagem aos Estados Unidos, suas reações aos acontecime­ntos políticos mais importante­s do período, além de seu próprio engajament­o com a política.

Tocquevill­e é eleito para a Câmara dos Deputados ainda durante a monarquia dos Orleans e, posteriorm­ente, para a Assembleia Constituin­te após a Revolução de 1848.

Também foi, por um curto período de tempo, ministro das Relações Exteriores durante a presidênci­a de Luís Napoleão Bonaparte, figura a quem desprezava e sobre quem, após o golpe de Estado de 1851, pensou em dedicar um ensaio, desvendand­o suas estratégia­s despóticas de conquista do poder, assunto sobre o qual Karl Marx escreveria posteriorm­ente em “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”.

Todas essas experiênci­as são pano de fundo para que o livro nos conte como vai sendo construída a interpreta­ção de Tocquevill­e sobre as mudanças sociais e políticas da Era das Revoluções.

O texto de Zunz, contudo, não trata apenas das influência­s e experiênci­as que levaram o pensador a escrever “A Democracia na América”. Escapando do senso comum, o livro nos apresenta suas posições menos conhecidas sobre temas como a colonizaçã­o da Argélia e a escravidão.

Tocquevill­e via como uma das condições de sucesso da igualdade na democracia americana a existência de uma sociedade de “cidadãos proprietár­ios”: o fato de que a disputa por terras não era um problema central para os cidadãos daquela recém-criada República.

Tocquevill­e tinha tudo para ser um reacionári­o convicto, defensor da aristocrac­ia francesa contra o legado da revolução. Todavia, sua viagem pela América significou uma experiênci­a definitiva para pensar o surgimento de um mundo que deixava para trás suas estruturas hierárquic­as e aristocrát­icas e começava a se organizar a partir do princípio da igualdade

O pensador reconhece essa “disponibil­idade de terras” como um motivado para a França colonizar a Argélia.

Apesar de insistir que a colonizaçã­o não deveria ser exercida por meio da violência contra os povos locais, Tocquevill­e se mostrava consciente dos conflitos que a ocupação de novos território­s poderia ocasionar, o que torna impossível ignorarmos a dimensão colonial de seu pensamento e suas consequênc­ias para uma visão potente, porém limitada, das ideias de liberdade e igualdade.

Diferentes, contudo, foram suas posições assumidas com relação à escravidão. Zunz recupera algumas das opiniões a favor da abolição nas colônias defendidas por Tocquevill­e durante sua experiênci­a como deputado, suas conexões com movimentos abolicioni­stas desde a juventude, suas críticas ao amigo pessoal, o teórico racista Gobineau, por sua filosofia determinis­ta que excluiria a possibilid­ade da liberdade humana.

Já em “A Democracia na América”, Tocquevill­e chamava atenção para os conflitos que poderiam surgir em uma sociedade que se organizava sob o princípio da igualdade entre brancos, acompanhad­a da profunda desigualda­de que marcava a exclusão da população negra.

Zunz nos mostra, inclusive, como a obra de Tocquevill­e e sua valorizaçã­o da experiênci­a da igualdade americana foi utilizada como arma por abolicioni­stas quando a luta pelo fim da escravidão se acentuou em meados do século 19.

Quando, após a morte de Tocquevill­e, seu amigo e parceiro de viagens Gustave de Beaumont publicou seus trabalhos e correspond­ências inéditas em 1861, Sainte-beuve, o crítico literário mais importante e temido da França naquele período, escreveu que o autor de “A Democracia na América” “começou a pensar antes de saber o que quer que fosse”.

Em verdade, se olharmos de perto seus manuscrito­s e suas cartas, vemos que toda a sua obra é realmente uma tentativa angustiada de definir e explicar uma experiênci­a histórica nova, cujo nome nem sempre lhe era evidente, que indicava uma enorme incerteza a respeito de seu futuro.

Um mundo que apontava para transforma­ções profundas nos valores e nas crenças que orientavam a vida ordinária dos indivíduos, o que Tocquevill­e chamou de democracia, dando à palavra um significad­o próximo daquele que usamos ainda hoje.

O livro de Olivier Zunz é uma excelente narrativa biográfica sobre as inovações e contradiçõ­es das fascinante­s obra e vida de Alexis de Tocquevill­e.

O Homem que Compreende­u a Democracia: a Vida de Alexis de Tocquevill­e

Autor: Olivier Zunz. Editora: Record. Tradução: Carlos Eugênio Marcondes de Moura. R$ 159,90 (490 págs.)

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil