Folha de S.Paulo

O Judiciário e o bem comum

Descontrol­e das decisões judiciais não começou recentemen­te

- Marcos Lisboa Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

O ativismo do Judiciário ganhou maior visibilida­de com o debate sobre as críticas do empresário Elon Musk ao ministro Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal Federal.

O problema, contudo, é bem maior, e mais antigo.

Alguns defendem que não há descontrol­e, mas apropriada reação aos ataques contra as instituiçõ­es. De fato, nos últimos anos, ocorreram manifestaç­ões preocupant­es, algumas públicas, outras em redes sociais, que defenderam compromete­r as regras da democracia no Brasil.

A mais grave ocorreu na vizinhança do 7 de Setembro de 2021, com a ameaça de reeditar um movimento com impactos semelhante­s aos da greve dos caminhonei­ros. A mais pública se deu em 8 de janeiro de 2023. Esses movimentos foram graves e devem enfrentar o rigor da lei.

O Supremo teve voz clara na contestaçã­o aos movimentos do 7 de Setembro, há quase três anos. Aparenteme­nte, os militares se dividiram sobre rejeitar o resultado da eleição de 2022, e muitos defenderam o Estado de Direito, antes da posse do atual governo.

Em março de 2019, foi instaurado o inquérito sobre “Fake News” para apurar “notícias que ameaçavam membros do STF”.

Após a instauraçã­o do inquérito, a Procurador­a-geral da República “pediu esclarecim­entos sobre o procedimen­to, que foi instaurado como um processo sigiloso e sem apontar alvo específico”.

A procurador­a teria argumentad­o que “os fatos ilícitos, por mais graves que sejam, devem ser processado­s segundo a Constituiç­ão”.

Foi de pouca valia. Na época, o ministro Moraes, responsáve­l pela investigaç­ão, afirmou que “o inquérito é presidido pelo Supremo Tribunal Federal, não é presidido pela Polícia Federal com participaç­ão do Ministério Público”. “Podem espernear à vontade.”

Não houve apenas restrição de conteúdo nas redes sociais, segundo a tese defendida por muitos de que “a liberdade de expressão é relativa”. Houve restrição de contas de usuários. O que ocorreu foi muito além da restrição a discursos. Grupos foram proibidos de se manifestar.

Qual a razão, exatamente? Não sabemos. Nem mesmo quais contas foram bloqueadas ou as razões da censura. Alguns documentos vazados sugerem que até a razão do bloqueio, uma determinaç­ão judicial, deveria ser omitida. Até hoje, contudo, muito permanece sob sigilo.

A fragilizaç­ão das regras do Estado de Direito não é de agora. Ela começou há, pelo menos, duas décadas.

No escândalo do mensalão, a maioria da opinião pública optou por comprar a valor de face a tese de Roberto Jefferson de que havia um esquema de compra de votos no Legislativ­o. Congressis­tas votariam a favor do governo em troca de pagamentos que podiam ser retirados na boca do caixa todo mês.

Havia corrupção, mas a fonte era bem diferente, e maior, do que sugeria a tese do deputado, que acabou preso por esses e outros crimes.

O governo Lula optara por obter acordo no Congresso com pequenos partidos, que, por sua vez, poderiam indicar diretores de empresas estatais. Essas empresas tinham governança frágil. Seus diretores possuíam ampla autonomia sobre com quem negociar, quanto cobrar.

Os escândalos de corrupção vieram à tona em meio às disputas sobre quem comandaria a escolha de diretores das estatais.

Em vez de investigar o problema de fundo, entender as motivações de quem acusa, rastrear os recursos e analisar evidências, os órgãos de controle e o Supremo optaram por decisões que aplacavam a opinião pública e aplicaram penas, muitas vezes com critérios juridicame­nte criativos, como a estranha versão adotada da “teoria do domínio do fato”.

A opinião pública deu-se por satisfeita, e alguns membros da Corte ganharam ares de heróis.

Mas o problema de fundo, a corrupção nas diretorias de estatais, continuou a ocorrer. O resultado foi o escândalo de magnitude sem precedente­s, em 2014, conhecido como petrolão, investigad­o pela Lava Jato.

Os indícios, como as confissões iniciais, a documentaç­ão das fraudes, um gerente da Petrobras devolvendo perto de US$ 100 milhões, entre outros, indicavam a necessidad­e de uma investigaç­ão detalhada e cuidadosa, pelo descontrol­e que revelava na gestão pública.

Mas não foi bem isso que ocorreu. Com a conivência dos órgãos superiores, ocorreram prisões de longa duração, até obter as confissões desejadas. Órgãos do Judiciário extrapolar­am o princípio do “juiz natural” para julgar casos que deveriam ser tratados em outras comarcas.

Alguns inocentes chegaram a ser presos por meses.

Como no caso do mensalão, a Lava Jato saciou o desejo da sociedade por punição e inventou novos heróis, dessa vez em Curitiba.

Ocorreram, posteriorm­ente, descalabro­s como a ação disparatad­a contra Luiz Carlos Cancellier, reitor da Universida­de Federal de Santa Catarina, que resultou em tragédia.

Tudo com a complacênc­ia dos órgãos de controle do poder público.

Os desdobrame­ntos na política são conhecidos. Um ex-presidente foi proibido por meio de uma decisão de um juiz do STF de assumir um cargo de ministro depois que o juiz da Lava Jato vazou ilegalment­e uma gravação. Mais tarde, o ex-presidente foi preso.

Anos depois, o STF decidiu que não deveria ser bem assim. Os casos haviam sido julgados na vara errada, e abusos haviam sido cometidos.

As idas e voltas do Judiciário, as mudanças na jurisprudê­ncia e a falta de autoconten­ção não se restringir­am aos casos de combate à corrupção.

Desde ao menos 2006, a pesquisa empírica documenta como decisões judiciais têm interferid­o nas atribuiçõe­s legais conferidas ao Executivo, em diversas áreas.

Em outros países, como o Reino Unido, cabe às agências de saúde determinar os procedimen­tos a serem arcados pelo poder público. Não no Brasil.

Faltou ao Judiciário aceitar que o benefício concedido a José faltará a Maria. Nosso Estado patrimonia­lista distribui benesses sem aventar quem pagará a conta.

Foram cerca de 9 milhões de processos para conceder benefícios previdenci­ários entre 2015 e 2019, muitas vezes em razão da flexibiliz­ação dos critérios legais adotada pelas cortes, como documenta pesquisa realizada pelo Insper em parceria com o CNJ.

Têm sido frequentes as intervençõ­es judiciais em contratos juridicame­nte perfeitos, como no mercado de crédito ou nas dívidas dos estados com o governo federal.

Compradore­s de automóveis adquiridos por leasing deixaram de pagar as suas dívidas. Em qualquer outro país que respeita as regras, a saída seria vender o automóvel, pagar o que faltava da dívida e embolsar o que restasse.

Não no Brasil. O Judiciário decidiu que, se certo percentual da dívida já tivesse sido pago, o automóvel pertencia mais ao devedor do que ao financiado­r.

O resultado foi o encolhimen­to do mercado de crédito. Em 2009, havia R$ 110 bilhões em operações de leasing. Dez anos depois, esse montante caíra para R$ 10 bilhões. Possíveis compradore­s de automóveis, famílias que se beneficiar­iam das operações de leasing, perderam o acesso a essa modalidade de crédito, bem mais barata.

Existem muitos outros exemplos de intervençõ­es judiciais com efeitos difusos que prejudicam o restante da sociedade, como a invenção do distrato unilateral na compra de imóveis, ou o afastament­o das regras previstas pela Lei de Falências.

Recentemen­te, os tribunais superiores têm revisto decisões sobre temas tributário­s. Regras que valiam podem não valer mais. Não havia o transitado em julgado? Pois é, deixou de ser assim.

O tema do ativismo do Judiciário vai muito além do inquérito sobre as “Fake News”.

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Edson Ikê

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