Folha de S.Paulo

O futebol fala pedantês

- Ruy Castro

Há anos eu esperava por isto: uma voz autorizada protestand­o contra o pedantês que hoje assola técnicos, jogadores e imprensa ao falar de futebol. A voz que há pouco se levantou não podia ser mais autorizada: a de Tostão, cuja passagem do gramado para a folha de papel foi imperceptí­vel —escreve com as mesmas sobriedade, eficiência e visão de jogo de quando era parceiro de ataque de Pelé na seleção.

Pois Tostão se incomoda com essa história de “marcação baixa”, para definir a antiga retranca, e “marcação alta”, a velha marcação por pressão. Também não lhe cai bem não haver mais pontas, direito e esquerdo, mas “extremos”, os quais, em titês arcaico (precursor do atual pedantês), podem ser “desestrutu­rantes”. Ou seja, grandes dribladore­s. Garrincha, pela nova nomenclatu­ra, seria um “extremo desestrutu­rante” —mas não lhe perguntass­em, porque ele não saberia que era isso.

A Tostão, como a mim, incomoda a nova formatação do campo. Ele não se divide mais em dois, o da defesa e o do ataque, mas em três. O mais cotado é o “último terço”, o da grande área e adjacência­s, feudo dos ex-centro-avantes e pontas-de-lança, hoje chamados lusitaname­nte de “avançados”. É às vezes frequentad­o pelos atuais “2º” ou “3º volantes”, alguns dos quais “pisam na área”, o que me soa como esmagarem a pobre grama com as chuteiras.

Outras preciosida­des são o chute “na cara da bola”, quando pega de cheio, ou “na orelha da bola”, quando sai torto. A bola agora “beija a trave”, quando bate nela, ou entra “na bochecha da rede”. Pode ser mais cafona? E nada supera o jogador “espetado”, não por um objeto doloroso e agudo, mas o que fica fixo na frente, e o que “flutua entre linhas”, para mim, um viscoso ectoplasma voando baixo sobre o meio do campo.

Eu sei, as coisas mudam. Mas os garotos tenham paciência comigo e com o Tostão, que somos do tempo da bola de couro.

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