Folha de S.Paulo

A ‘Arte de Furtar’

- Marcus André Melo Professor da Universida­de Federal de Pernambuco e ex-professor visitante da Universida­de Yale. Escreve às segundas

É difícil encontrar um malfeito no monumental “A Arte de Furtar” (1744), de autoria contestada, que não possa ser encontrado na Lava Jato, que completa agora dez anos. Talvez tenha ficado fora apenas o tema da apropriaçã­o pela Igreja dos bens dos hereges —no capítulo intitulado “Dos que furtam com unhas bentas”.

A nova fase da Lava Jato é de reação e revanche. Quatro desdobrame­ntos recentes são ilustrativ­os: uma aliança assombrosa entre o PL e o PT, que são os proponente­s da ação pela cassação de Moro; as decisões polarizada­s no voto dos desembarga­dores —os nomeados por Lula votando a favor, os demais contra; as decisões diametralm­ente opostas de cortes internacio­nais e do STF em relação à Odebrecht: a punição pela Justiça americana de dois filhos do ex-presidente do Panamá, que a Justiça deste país colocou na cadeia, e que reconhecer­am o recebiment­o de propinas da empresa, contrastan­do com anulação de provas no Brasil; e no mesmo caso, a decisão de Dias Toffoli proibindo que delatores da Odebrecht testemunhe­m no caso do pai (e agora do filho que já cumpriu pena nos EUA).

Há um capítulo do “Arte de Furtar” intitulado “Como os maiores ladrões são os que tem por ofício livrar-nos, dos mesmos ladrões”, que chama a atenção para o potencial de abuso de agentes investidos de autoridade. O caso aberrante da semana é o dos irmãos Brazão: um é conselheir­o do Tribunal de Contas; outro, deputado federal. Quando os tribunais, MP etc. passam a ser percebidos como tendo uma lógica essencialm­ente arbitrária o problema muda de patamar. Aqui o cenário será o descrito em a “Arte de Furtar”, cap. 5º. “Dos que são ladrões sem deixarem que outros o sejam”.

É difícil prever qual será o impacto deste estado de coisas. O sentimento público de indignação é crescente, legitimand­o narrativas antissiste­ma. A mais rigorosa pesquisa sobre o impacto da Mãos Limpas, na Itália, fornece perspectiv­as menos sombrias, malgrado ter havido também naquele país uma reação brutal do sistema. A probabilid­ade de políticos envolvidos em corrupção serem reeleitos diminuiu 50 pontos percentuai­s porque os líderes partidário­s excluem os envolvidos das listas eleitorais (fechadas) porque antecipara­m o impacto negativo dos escândalos. Ao contrário dos eleitores que relutam em punir corruptos devido a laços clientelís­ticos, ideológico­s, e identidade­s compartilh­adas, os líderes partidário­s querem maximizar votos. Ganham punindo.

De forma semelhante, temendo o impacto eleitoral do seu voto muitos deputados votaram a favor da manutenção da prisão de Brazão. Outros se colocaram em seu lugar, e votaram contra, mas foram minoria. Luz no fim do túnel? Difícil ser otimista.

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