Folha de S.Paulo

Quem sou eu para lutar contra Zuckerberg?

Se não fossem as leis, estaríamos até hoje assistindo a propaganda­s de cigarro; a luta é da sociedade e do poder público

- Giovana Madalosso Escritora, roteirista e uma das idealizado­ras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras

A penúltima coluna do Antonio Prata veio como uma mão estendida para mim. Nela, ele sustenta que a geração Z, a primeira que teve smartphone e rede social desde que se entende por gente, é mais deprimida, ansiosa, tem mais distúrbios alimentare­s e é mais propensa a automutila­ção do que qualquer outra, e sugere que deixemos nossos filhos longe das redes. Por que me senti amparada pelo meu colega? Porque li a coluna no meio da sala, ladeada por minha filha e duas amigas dela, também crianças. Era justamente sobre o uso do smartphone que eu falava com elas, que dormiriam conosco naquela noite, os colchões arrumados ao lado do sofá. Já eram quase 22h, elas tinham aula no dia seguinte e eu pedia que, depois de um dia todo de uso, por favor, deixassem as telas de lado. Flagrei o pânico em seus rostos. Uma pensou um pouco e disse que não podia largar o smartphone, precisaria dele para despertar. Falei que não se preocupass­e, eu as despertari­a. Pensou mais um pouco: mas é que eu tô acostumada com esse toque de marimba. A outra também se recusou a largar: só consigo jantar e dormir assistindo a vídeos. Não me opus, mas talvez tenha suspirado antes de deixar o ambiente porque minha filha veio atrás de mim: que chata, mãe! Desse jeito ninguém vai querer dormir aqui em casa. Tive vontade de chorar de cansaço. Pelo menos meu esforço não foi em vão: por não permitirmo­s que nossos filhos usem redes sociais até os 15 anos e tela antes de dormir, acabamos por criar três seres exóticos que leem livros quase todas as noites. Mesmo assim, não conseguimo­s impedir de passar pela nossa porta problemas com autoimagem, conversas precoces sobre regimes e skincare e algumas outras coisas bastante sombrias. Não dá para demonizar a tecnologia: tudo depende do uso que fazemos dela. Chats e chamadas com amigos, por exemplo, podem fortalecer laços. Rede social é outra coisa, com assuntos impróprios para crianças, aquele perverso botão de validação (like me, please!) e mecanismos criados para reter ao máximo o usuário. Sem falar no risco sempre presente de phishing e pedofilia. Esses dias alguém sugeriu que limitar o uso de redes é problema para as mães. Oba, mais uma função para nós, já tão sobrecarre­gadas. Além de machista, a sugestão é elitista: a maioria dos pais trabalha o dia todo e não têm condições de monitorar os filhos. Sabiamente, Antonio Prata e tantos outros sugerem que essa luta deve ser abraçada pela sociedade. Vou além: pela sociedade e pelo poder público, como foi feito na Flórida, onde o governador assinou uma lei em que proíbe redes como TikTok e Instagram de concederem contas a menores de 14 anos, depois que diversas famílias e 40 estados americanos já tinham entrado na Justiça contra a Meta e outras big techs por prejudicar­em a saúde física e mental dos jovens. Exagero? Se não fossem as leis, estaríamos até hoje assistindo a propaganda­s de cigarro, se bobear em canais infantis. Olhe para mim: sou apenas uma mãe exausta, de avental, no meio da sala. Como vou lutar sozinha contra as redes sociais com seus efeitos visuais e sonoros e seus superalgor­itmos? Não consigo. E, honestamen­te, nem aguento mais fazer isso.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil