Rede de intrigas
Para Tarcísio, o problema foi o fato de a TV Cultura não ter mandado uma equipe do jornalismo para cobrir a sua presença em uma entrega de casas em São Sebastião, no litoral paulista, depois das enchentes do ano passado.
Em nota, a TV Cultura afirma que fez a cobertura de todas as entregas do governador na região, além de uma extensa cobertura da tragédia.
Auxiliares do governador passaram a defender que é preciso racionalizar os gastos e a gestão da TV, que seria “inchada e obsoleta”. Argumentam que não se trata de uma medida específica voltada à fundação, mas de uma orientação geral para enxugar órgãos sustentados pelo estado.
Ainda de acordo com secretários, Tarcísio não definiu as mudanças que pretende implementar, mas estuda os caminhos diante da autonomia da fundação. Alguns falam em rever repasses de verba e até em um projeto de lei para alterar o tamanho e a composição do conselho da fundação.
O conselho tem 47 membros, e apenas quatro são fiéis a Tarcísio. Um pouco de história e matemática ajudam a entender essa disputa de poder.
O decreto que criou a fundação permitia a ingerência do governo ao determinar que o diretor-presidente e o vice-diretor do conselho deveriam ser escolhidos pelo governador. Eram apenas 20 conselheiros e quase metade das vagas era para membros do governo.
Com o fim da ditadura, em 1986, um novo decreto ampliou o número de conselheiros para 45, reduzindo o percentual de membros do governo. No novo estatuto, o governador não tinha mais poder de eleger o presidente e o vice-presidente do conselho, o que ficou a cargo dos conselheiros.
Hoje, após alterações, o conselho tem 47 membros, sendo três vitalícios —da família que fez a doação inicial para a criação da Fundação Padre Anchieta—, 20 natos —que ocupam cargos, como o secretário da Cultura ou o reitor da USP—; 23 eletivos —pessoas da sociedade civil indicadas e eleitas pelos conselheiros— e um representante dos funcionários da fundação.
É dentre os natos que o governo consegue ter representantes. Além do titular da Secretaria da Cultura, fazem parte do conselho o secretário da Educação e o da Fazenda. Outras duas vagas de natos são da Alesp, o presidente da Comissão de Educação e Cultura e um deputado indicado pela comissão. Nessas vagas estão Bebel, do PT, de oposição a Tarcísio, e Tomé Abduch, do Republicanos.
Desde 2020, o governo tem repassado cerca de R$ 100 milhões por ano à fundação. Esse valor vai quase todo para o pagamento de salários dos funcionários e não poderia ser alvo de cortes, segundo técnicos da própria gestão Tarcísio.
O decreto da fundação põe, dentre os recursos, “as dotações, subvenções e contribuições que o estado anualmente designa em seus orçamentos”. Mas não há uma determinação legal sobre o valor a ser repassado e, segundo a fundação, a participação do repasse do governo vem diminuindo.
Há cinco anos, era 70%, e hoje, 40%. Os outros 60% advêm de publicidade, doações, parcerias e prestação de serviços, como a produção da TV Câmara, paga pela Câmara Municipal de São Paulo, e a TV Educação de Santos, da prefeitura.
Como não há previsão legal do montante do repasse, a tensão na TV Cultura aumenta. Ex-presidente do conselho curador da fundação e especialista em direito público, Belisário dos Santos Junior diz que, uma vez que o estado fez com que constasse no estatuto que ela receberia recursos do orçamento, “existe uma obrigação jurídica de manter a TV funcionando”.
“Seria desarrazoado e passível de correção judicial o governo não repassar dinheiro suficiente para que a TV cumpra com seus objetivos”, diz. “É uma TV reconhecida e premiada internacionalmente. É impossível o governo dizer que ela não cumpre o seu papel.”
Na emissora, o clima é de apreensão. Os mais otimistas temem um processo de estrangulamento, com corte de repasses e pressões —a exemplo do pedido de CPI. Para os mais pessimistas, o governo busca um caminho para a venda da emissora.
A tensão no conselho vem desde o ano passado. Em maio, a secretária de Cultura Marilia Marton sugeriu a indicação do cineasta Josias Teófilo para o conselho. Teófilo é autor de um documentário sobre o escritor e guru do bolsonarismo Olavo de Carvalho.
A reação dos conselheiros foi negativa, e Marton decidiu fazer a indicação de Aldo Valentim, ex-secretário nacional de Economia Criativa e Diversidade Cultural do governo Bolsonaro e atual secretário de Cultura de Osasco, na Grande São Paulo. Professor universitário e mestre em políticas públicas pela Fundação Getulio Vargas, Valentim tem um perfil técnico e acabou sendo eleito.
Numa reunião do conselho em junho, o clima foi pesado, e Marton se queixou do veto ao cineasta, o que considerou uma falta de abertura para a diversidade. Em setembro, a secretária intimidou conselheiros, dizendo que iria descobrir quem havia vazado a informação sobre a indicação que ela havia feito de Teófilo.
Neste ano a temperatura subiu e terminou na Justiça. Em fevereiro, numa nova eleição, Fabio Magalhães, presidente do conselho, disse que havia consultado conselheiros e chegado a uma lista de sugestões. Os nomes apresentados, diz ele, ajudariam a ampliar a diversidade de gênero, raça, perspectivas e interesses.
A colocação incomodou o governo, que se sentiu preterido nas indicações. Marton disse a pessoas próximas que não foi consultada. Em março, os seis nomes mencionados por Magalhães foram eleitos —Lilia Moritz Schwarcz, Djamila Ribeiro, Renata de Almeida, Antonia Quintão, Cristine Takuá e Gabriel Jorge Ferreira.
O bolsonarista Caíque Mafra, candidato a deputado estadual em 2022 pelo Republicanos, pediu uma liminar para que a votação não fosse realizada. A fundação disse que “jamais houve limitação de indicação de candidatos” e que o governo não propôs nomes. A Justiça indeferiu o pedido.
O conselheiro Aldo Valentim criticou o modelo de eleição. “Fiquei incomodado com a condução do processo, sem ampla consulta junto aos representantes do governo, do deputado representante do Poder Legislativo [Abduch] no colegiado e com nomes fechados em uma única reunião.”
As últimas quatro reuniões do conselho, diz a fundação, não tiveram nenhum dos três membros do governo. A ausência foi vista como ruptura.
Essa ruptura se evidenciou com o pedido de CPI, ainda que o governo negue essa relação. Em nota, a Secretaria da Cultura afirmou que “a instalação de qualquer CPI na Alesp é uma prerrogativa exclusiva da atuação parlamentar”.
Entre as acusações que embasam o pedido está uma de nepotismo —Pedro Martins, enteado de José Roberto Maluf, presidente da fundação, é funcionário da TV, na área de mídias digitais, com salário de R$ 18,2 mil. A fundação afirmou que não cabe o conceito de nepotismo em entidades de direito privado —a fundação não tem funcionários públicos. “Além disso, não existe grau de parentesco com o presidente, bem como subordinação do colaborador com o mesmo.”
Responsável pelo pedido de criação da CPI, Guto Zacarias afirmou que “quer que o dinheiro público seja bem investido, com o menor gasto e a maior audiência e qualidade”.
A fundação afirma que a TV, segundo o Kantar Ibope, está em quarto lugar em audiência na TV aberta de segunda a sexta, atrás de Globo, Record e SBT e à frente de Band, RedeTV! e Gazeta. Afirmou ainda ter mais audiência do que os canais fechados.
Independente, a TV irrita bolsonaristas. Em outubro de 2022, foram renovados até 2025 os contratos de Vera Magalhães, apresentadora do Roda Viva, e Marcelo Tas, do Provoca, críticos ao bolsonarismo.
Em janeiro de 2023, no calor da tentativa de golpe, a Cultura exibiu o documentário “O Autoritarismo Está no Ar: Três Anos Depois”, sobre os riscos do avanço da extrema direita. O deputado federal Eduardo Bolsonaro postou “discurso ideológico e uso da máquina estatal em favor da política”.
Nesta semana, foi a esquerda quem ficou em polvorosa com o Roda Viva com Flávio Bolsonaro. O convite para o senador, segundo a reportagem apurou, foi feito em 30 de janeiro, e foi visto pela emissora como um reforço na sua imagem de pluralismo.
O programa quer manter a lista de convidados equilibrada e avaliou que é preciso chamar mais personalidades da direita, embora já tenha tido entrevistados como os senadores Ciro Nogueira, Rogério Marinho e o deputado Marcos Pereira. Tarcísio, inclusive, vem sendo insistentemente convidado.