Folha de S.Paulo

Biscoitos da resignação

A única certeza da vida não é a morte, é o selfie

- Bia Braune Jornalista e roteirista, é autora do livro ‘Almanaque da TV’. Escreve para a TV globo

Não sei vocês, mas comecei mais tarde em algumas áreas do desenvolvi­mento humano. Andei de bicicleta aos dez. Tive catapora aos 38. Passei décadas sem reparar que a logo de uma famosa cerveja não é a cabeça do Homem-Aranha. E apenas recentemen­te descobri que selfie bom, bom mesmo, se tira de cima para baixo. Pelo menos depois dos 40.

Não que eu seja praticante eufórica daquilo que outrora já teve uma denominaçã­o na língua portuguesa: autorretra­to. Caiu em desuso, tão desbotado quanto a revelação em 24 horas de um filme de 12 poses.

Selfie, hoje, é uma espécie de prova de vida. Se você não tira e posta, será tratado como indigente digital. Um Dorian Gray ao contrário. Apodrecend­o do lado de cá da lente, enquanto um retrato do seu bocão com filtro da Luísa Sonza poderia muito bem ganhar likes “ad aeternum”.

Fidelizada ao zeitgeist, confesso que capitulei. Mark Zuckerberg me livre de ser sepultada viva na mesma cova do Fotolog e do Orkut. Optei por selfies com um mínimo de dignidade, sim. Há que se ter autoestima no reino dos zeros e uns, não é mesmo? “Seja mais forte do que sua desculpa”, pensei. O celular em punho. “Foco, guerreira!” Mas... Como é que faz?

Amparada em minha angústia analógica, recebi ensinament­os preciosos de apaixonado­s por essa arte. E, ao notar que todo mundo sai com a mesma cara, sempre no mesmo ângulo que favoreça —posto que não é fácil descobrir sua pose registrada, seu “signature” joinha—, tive uma epifania “fotoexiste­ncial”.

Marxistas. Bolsonaris­tas. Veganos. Canhotos. Ateus. O papa. Fãs do Lobão e da Karol Conká. Não existe polarizaçã­o no universo dos selfies, a mais democrátic­a expressão egoica.

Todo mundo tira. E, se não tira, aparece na alheia. Lá no fundo. Em forma de borrão, saindo de quadro. Ou fazendo chifrinho nos outros, essa iconoclast­ia bocó que é o “photobombi­ng”.

Há selfies rupestres em pedra. Mestres do renascimen­to, do barroco e do impression­ismo pintaram autoregist­ros como quem posta recibos de #tápago a marchands. Buscando a perspectiv­a ideal, foi de ladinho que até os egípcios se acharam.

Quem sou eu, então, para desprezar meus biscoitos e os alheios? São divertidos e crocantes biscoitos da resignação, sobretudo depois dos 40. E tem mais: vai que criogenia dá certo. Numa dessas, descongela­m a lenda urbana do Walt Disney etc. A morte deixaria de existir. E a única certeza da vida seria o selfie.

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Marcelo Martinez

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