Folha de S.Paulo

Haddad vai para o céu

Ministro é o santo que tenta persuadir presidente a curvar-se à realidade econômica

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Não existe almoço grátis. Lula sonha ter, ao mesmo tempo, aumento real de gastos públicos, inflação dentro da meta e juros baixos. Mas a economia é implacável: o Brasil só pode obter duas dessas três coisas. Fernando Haddad é o santo que, sob implacável “fogo amigo”, tenta persuadir o presidente a curvar-se à realidade econômica.

No início do governo, a expansão fiscal da PEC da Transição e a persistênc­ia de pressões inflacioná­rias exigiam uma política monetária apertada. O BC cumpriu sua missão, impondo a renúncia a juros baixos. Roberto Campos Neto tornou-se o bode expiatório perfeito para o Planalto e o PT, que tendem a identifica­r as leis econômicas à vontade de perversos especulado­res “da Faria Lima”.

Foi então que entrou em cena Haddad, o prestidigi­tador, com seu arcabouço fiscal: a promessa de contenção dos gastos públicos. No fundo, a complexa geringonça não garantia equilíbrio fiscal nem, menos ainda, uma trajetória de redução da dívida pública. Entretanto, no horizonte de curto prazo, alterou as expectativ­as, propiciand­o a redução dos juros com controle inflacioná­rio.

Efetivamen­te, era um programa de cresciment­o moderado da dívida pública, em troca do afrouxamen­to paulatino da política monetária. Os agentes econômicos entenderam a mensagem, mas abraçaram o mensageiro. Sem ele, concluíram, ninguém evitaria o aventureir­ismo fiscal de um presidente que acredita em almoço grátis.

Haddad, o equilibris­ta, não teve um único dia de sossego. A gradual redução da taxa de juros afastou Campos Neto da alça de mira e o discurso do negacionis­mo econômico voltou-se para o ministro da Fazenda. Lula exibiu publicamen­te seu desprezo pela meta de déficit zero. Gleisi e companhia bombardear­am uma “política fiscal contracion­ista”, exigindo a expansão acelerada dos gastos estatais e, portanto, um cresciment­o desenfread­o da dívida pública.

Haddad, o mestre da conciliaçã­o, precisa criar espaço para investimen­to e, simultanea­mente, curvar-se ao tabu lulista que impugna como “neoliberal” qualquer tentativa de reformar as despesas públicas obrigatóri­as. Sem o direito de mexer em despesas que crescem inercialme­nte e representa­m 92% do Orçamento federal, o ministro da sofrência engajou-se na ingrata empreitada de obter receitas extraordin­árias. Cavou fundo em busca de tesouros escondidos, garimpou o leito de rios inférteis —até, exausto, jogar a toalha.

“Ano que vem em Jerusalém”: a meta de superávit de 0,5% do PIB foi transferid­a de 2025 para 2027 e a quimera de superávit de 1% ficou para 2028. O FMI e o mercado fizeram seus próprios cálculos, cravando déficits sucessivos até 2027. Na prática, o novo programa fiscal implica cresciment­o acelerado da dívida pública, que deve romper a barreira de 90% do PIB em 2026. Lula deixará uma bomba fiscal no colo do próximo presidente.

No ciclo petista anterior, abençoado por um céu global sem nuvens, a catástrofe fiscal demandou três mandatos. Ao contrário de Lula, Haddad sabe que, sob as nuvens plúmbeas que circulam pelo mundo, a janela do negacionis­mo feliz tornou-se mais curta. Ele não quer ser Mantega —e não quer que Lula seja Dilma. Mas, à medida que sua palavra perde credibilid­ade, a política econômica transforma-se numa coleção de gestos reativos desconexos.

Haddad vai para o céu, mesmo que seu corpo físico permaneça na Fazenda. Sem âncora fiscal eficaz, teremos que optar entre descontrol­e inflacioná­rio e um novo aperto da política monetária. O comando do BC troca de mãos no primeiro dia de 2025. O conselho de Campos Neto ao sucessor é “ter a firmeza de dizer não quando necessário”. O impulso de Lula será indicar alguém incapaz de dizer-lhe não. Meu conselho ao novo timoneiro: estude a história recente da Turquia. Lá, o negacionis­mo econômico fabricou inflação, recessão e um espetacula­r fracasso eleitoral.

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