Médica que enfrentou crise em 2014 diz estar ‘em paz’ com vírus
“Quando tivermos uma nova epidemia de ebola, não teremos os medicamentos disponíveis na primeira semana. [...] Mas, mesmo com demora, teremos remédio. Temos como reagir
Livia Tampellini infectologista italiana
“Para meningite, nós temos um tratamento e uma vacina. A malária mata muito mais gente, mas existe tratamento. Para pacientes com ebola, só podemos dizer que, se eles chegarem cedo [ao hospital], a família deles não vai morrer [contaminada].”
Foi com resignação que a infectologista italiana Livia Tampellini explicou a dificuldade de ajudar os pacientes com ebola quando recebeu esta repórter da Folha no hospital montado pelos Médicos Sem Fronteiras em Kailahun, no interior de Serra Leoa, em agosto de 2014.
Era o pico da epidemia que matou mais de 11,3 mil pessoas na Libéria, Guiné e Serra Leoa. “[Se você vai para o hospital] pelo menos vai ter alguém te limpando, te dando algum conforto. Pelo menos você morre com alguma dignidade. Mas não muda o fato de que você vai morrer de qualquer jeito.”
Na época, doentes se escondiam em casa por medo de hospitais. Com a mortalidade chegando a 80% em alguns locais, poucos saíam vivos dos centros de tratamento de ebola. E muitos médicos e enfermeiros, sem a proteção necessária, infectavam-se ao tratar os doentes.
Em Kailahun havia quatro ambulâncias para atender 480 mil pessoas. Cada vez que alguém adoecia, havia grandes chances de a família o levar de transporte público até o hospital, infectando ainda mais gente.
“Muita coisa mudou. Temos remédios, temos vacina e o tratamento dos pacientes melhorou”, disse Tampellini, em entrevista na quarta-feira (10) por videoconferência de Paris, onde trabalha atualmente como responsável médica das operações de emergência dos Médicos sem Fronteiras.
Tampellini passou três meses na Guiné, três na Serra Leoa e dois na Libéria em 2014. Quando nos encontramos, tanta gente estava se infectando que eles temiam ter de fechar o centro do MSF. Tampellini também estava com medo. “Quem não tem medo nunca é doido”, diz a médica de 47 anos.
Ela trabalhava todos os dias na área de alto risco do hospital para cuidar de pacientes com ebola, altamente contagiosos. Assim como enfermeiros e o pessoal que fazia a limpeza, seguia um protocolo rígido de segurança para evitar contaminação.
Dentro dos macacões, a temperatura chegava a 46º C. Por isso, cada médico ou enfermeiro podia ficar até 45 minutos dentro da área de alto risco. Aí saía, fazia a desinfecção, tirava a roupa e descansava meia hora. Só então podia voltar.
Ao lado do fotojornalista Avener Prado, estive em Serra Leoa cobrindo a epidemia de ebola em agosto de 2014. No hospital de Kailahun, sentia-se um cheiro forte de cloro. Às vezes, o que vinha era um odor de sangue. Muitos pacientes em estágio final da doença sangravam.
Na época, Tampellini contou que tinha dois pesadelos recorrentes. Em um deles, ela estava em um vilarejo e uma pessoa com ebola vinha correndo e vomitava em seus pés. Em outro, ela sonhava que uma de suas luvas se rasgava, ela demorava a perceber e se contaminava com o vírus.
“Não sonho mais com isso. Estou em paz com o ebola”, disse Tampellini de Paris.
Ela voltou a Kailahun em 2021, quando eclodiu um surto de ebola na Guiné. A missão era preparar o sistema de saúde para uma possível epidemia. O hospital da cidade estava mais equipado e a estrada até Kailahun, no coração da floresta desse país no oeste da África, foi asfaltada.
“Definitivamente, pode acontecer de novo. E quando tivermos uma nova epidemia de ebola, não teremos os medicamentos disponíveis na primeira semana”, disse Lívia. “Mas, mesmo com demora, teremos remédio. Temos como reagir.”