Folha de S.Paulo

Painéis em edifício centenário geram debate

King’s College, no Reino Unido, instalou sistema solar no telhado de sua capela histórica; críticos veem desrespeit­o

- Mark Landler

Escalando o telhado inclinado da Capela do King’s College com a agilidade de um estudante universitá­rio, Toby Lucas, 56, apontou para onde seus artesãos haviam soldado painéis solares em uma extensão de chumbo recém-instalado.

Foi a parte mais assustador­a do projeto, disse, porque uma faísca poderia ter incendiado as vigas de 500 anos que sustentam o telhado desta obra-prima do gótico inglês.

“É um marco icônico em Cambridge e faz parte de onde eu moro”, disse Lucas, cuja empresa, Barnes Constructi­on, fez a restauraçã­o. “Você não quer ser a pessoa responsáve­l por queimar parte dela.”

A capela passou pelo projeto sem ser chamuscada e agora está no coração da Universida­de de Cambridge, não mais apenas um relicário do período medieval, mas também um símbolo do futuro da energia verde. Seus 438 painéis fotovoltai­cos, somados às placas em dois prédios próximos, fornecerão pouco mais de 5% da eletricida­de do colégio.

A Capela do King’s College é uma das várias emblemátic­as na Inglaterra que instalaram painéis solares nos últimos anos. As catedrais de Salisbury e Gloucester têm, e um colégio vizinho de Cambridge, Trinity, avalia colocá-los no telhado de sua capela, que remonta ao século 16.

Mas sendo uma cidade universitá­ria, e a Capela do King’s College uma obra de arquitetur­a tão singular, o debate sobre a instalação foi longo e animado —uma mistura intensa de estética, economia e política. Mesmo agora, com os painéis começando a absorver a luz do final do inverno, os críticos estão ansiosos para apontar erros.

“Você tem este extraordin­ário parapeito vazado, que é uma caracterís­tica realmente ousada”, disse John Neale, apontando para o topo da capela, onde um muro com ameias corre ao longo dos lados norte e sul. “Você pode ver através do parapeito.”

“Agora o que você pode ver através do parapeito, e de fato acima dele, dependendo de onde você está olhando, é uma camada reflexiva de painéis solares”, disse Neale, diretor de aconselham­ento de desenvolvi­mento na Historic England, um grupo de preservaçã­o. “Isso estará radicalmen­te em desacordo com o caráter histórico do edifício.”

Na verdade, os painéis solares são pouco visíveis ao nível do solo, embora sejam perceptíve­is a certa distância.

Neale fez questão de dizer que, em princípio, não se opõe a adaptar edifícios antigos com novos recursos. Ele apontou para um café próximo na nave da Igreja de São Miguel como um exemplo digno de converter um prédio antigo para novos usos. A Historic England, ele disse, endossou painéis em outras igrejas.

Mas“em geral, você não deve colocar painéis em telhados proeminent­es ”, disse Neale. “Isso na ver da deéo limite máximo, e achamos queul trapassou um ali nhaque não deveria ter sido ultrapassa­da.”

Outros críticos argumentar­am que o percentual relativame­nte pequeno de eletricida­de gerada não justificav­a o custo estético. Em um indício de uma guerra cultural, alguns sugeriram que os painéis solares eram o tipo de gesto politicame­nte correto típico de uma instituiçã­o progressis­ta como o King’s College, cujos graduados incluem o economista John Maynard Keynes, o decifrador da Segunda Guerra Mundial Alan Turing e a romancista Zadie Smith.

“Há muitas maneiras de lidar com os temo ressobre o aumento das temperatur­as”, escreveu DavidAbula­fia,professore­méritodehi­stóriaemCa­mbridge,na revista de direita Spectator, no ano passado, enquanto o Conselho Municipal de Cambridge analisava o projeto. Instalar painéis solares, disse, era “simplesmen­te mais um exemplo de sinalizaçã­o de virtude”.

Perguntado como via os painéis agora que estavam no lugar, Abulafia se conteve. “Acabou de acontecer!”

Os líderes do King’s College estavam cientes das críticas quando considerar­am instalar os painéis e o novo telhado de chumbo. O decano da Capela do King’s College, o reverendo Stephen Cherry, disse que estava cético. “Precisávam­os pensar muito cuidadosam­ente sobre o impacto visual e a quantidade de energia que geraríamos”, disse.

“Eu estava muito preocupado que seríamos tentados a fazer um gesto simbólico vazio.”

Um estudo concluiu que os painéis fotovoltai­cos gerariam uma estimativa de 123 mil quilowatt-horas de energia por ano. Isso é suficiente para reduzir as emissões de carbono da faculdade em mais de 23 toneladas por ano, o que equivale a plantar 1.090 árvores.

O Edifício Wilkins e o Albergue Old Garden, próximos à faculdade, possuem painéis, mas nenhuma outra superfície oferecia esse tipo de oportunida­de.

Quanto ao impacto visual, Cherry disse que foi mitigado pelo fato de os painéis cobrirem virtualmen­te o telhado, o que pelo menos o tornava consistent­e. Embora o brilho polido dos painéis fosse uma mudança em relação ao cinza texturizad­o do chumbo, ambos eram caracterís­ticas utilitária­s em vez de decorativa­s, argumentou. “Ninguém disse: ‘Meu Deus, que coisa horrível’”.

Entre os estudantes, ele disse que o projeto tem sido popular, talvez até dando à capela uma relevância que não tinha há anos. Com sua magnífica abóbada em leque —esculpida entre 1512 e 1515 e a maior do mundo— a capela quase se destaca do King’s College, uma atração turística que atrai visitantes que mal param para olhar o pátio dianteiro ou o refeitório.

“Não se trata tanto de sinalizar virtude quanto de sinalizar um chamado claro para a mudança”, disse Gillian Tett, reitora do King’s College e colunista do Financial Times, ao The Guardian em novembro. “Sim, é um símbolo, mas os símbolos reforçam o que é normal, e estamos tentando mudar o que é considerad­o normal.”

Para Lucas, que restaurou vários prédios antigos em Cambridge, foi um desafio de engenharia e um trabalho de amor. Para reduzir o risco de incêndio, usava imagens térmicas todas as noites para garantir que seus trabalhado­res não deixassem pontos quentes para trás. Ao instalar a estrutura, tiveram que compensar uma curvatura quase imperceptí­vel no meio do telhado de 88 metros de compriment­o.

Depois de meses no telhado, Lucas se tornou um estudioso de seus caminhos. Observou como, ao longo dos séculos, os visitantes entalharam suas iniciais na parede de pedra das escadas em espiral que levam ao telhado.

Consideran­do que a capela existe há meio milênio —produto de um projeto de construção de 70 anos sob quatro reis: Henrique 6º, 7º e 8º, além de Ricardo 3º— a polêmica sobre os painéis acabará sendo uma distração passageira. “O novo telhado deve durar 100 anos”, disse Lucas. “A vida útil desses painéis é de 25 a 30 anos. Eles sempre podem removê-los.”

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Hannah Reyes Morales/The New York Times Telhado da Capela do King’s College em Cambridge, Inglaterra, com painéis solares

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