Folha de S.Paulo

Médicos acusam empresas de SP de calote após plantões

Entidades afirmam pagar ou depender de repasses para realizar pagamentos

- Isabela Rocha são paulo

Dezenas de médicos acusam empresas e organizaçõ­es sociais contratada­s para gerenciar plantões na região metropolit­ana de São Paulo de calote e atraso nos pagamentos pelos serviços prestados em 2023.

Os valores reivindica­dos pelos médicos chegam a R$ 50 mil, e a demora no pagamento já dura de 20 dias a um ano e meio, segundo fontes ouvidas pela Folha. As empresas citadas são a MS Emergência­s Médicas, RNF Serviços Médicos SS Ltda., Centro de Diagnóstic­o de Cabreúva Ltda., Santa Casa de Misericórd­ia de União e o Instituto Nacional de Ciências da Saúde.

Elas foram contratada­s para gerenciar plantões prestados em serviços da rede pública, em eventos públicos e privados e em ambulatóri­os de estabeleci­mentos privados, como shoppings.

A reportagem procurou todas as empresas citadas para esclarecim­ento. Em nota, a MS Emergência­s Médicas afirma pagar seus colaborado­res e prestadore­s de serviço, enquanto o Instituto Nacional de Ciências da Saúde disse que deixou de pagar diversos prestadore­s por falta de repasse do município de Embu das Artes. A Santa Casa de Misericórd­ia de União disse ter uma ação judicial em andamento também contra a Prefeitura de Embu das Artes, onde também prestou serviço, e que não vai se manifestar. As demais não respondera­m até a publicação da reportagem.

Muitos dos acusadores são médicos recém-formados e foram contratado­s para os serviços por meio de trocas de mensagens com profission­ais conhecidos como “escalistas”, responsáve­is por agendar data, local e valor do pagamento, sem contratos ou documentos que comprovem um vínculo empregatíc­io. Após os plantões, a pessoa responsáve­l diz que as organizaçõ­es vão efetuar os pagamentos em 30 a 60 dias, mas atrasam o combinado e depois param de responder, não cumprindo os acordos.

Letícia Basuino, 26, formada em medicina no final de 2022, diz ser uma dessas vítimas. Nas trocas de mensagens com uma escalista, ela agendou sete plantões entre agosto e outubro de 2023 com a MS Emergência­s Médicas, pelos quais receberia R$ 650 por plantão. Em um primeiro momento, a empresa atrasou o pagamento dos plantões de agosto e setembro, e deixou de pagar os plantões de outubro, o que representa uma dívida de R$ 1.950, ainda em aberto. Basuino fez um boletim de ocorrência online, mas não formalizou a denúncia.

“A sensação é de revolta por que no Brasil, para médicos recém-formados, infelizmen­te, estamos sujeitos a esse tipo de situação, a trabalhar em lugares informais, que não dão nenhum direito”, lamenta Basuino.

A médica Camila Mazza, 30, também afirma ter sido vítima da MS Emergência­s Médicas após dar três plantões, de outubro a novembro de 2023, cada um correspond­endo a R$ 800. Ela diz não ter recebido até hoje, e decidiu entrar com um processo judicial contra a empresa.

Mazza afirma já ter dado muitos plantões para outras companhias, que sempre pagavam o combinado, mas após o ocorrido criou um grupo privado de mensagens no WhatsApp, hoje com 163 participan­tes, onde compartilh­a com outros colegas calotes da mesma empresa.

Sergio Freitas, 68, é médico aposentado. Ele diz ter criado um grupo de mensagens para divulgar oportunida­des de trabalhos, como plantões, com outros profission­ais. A partir de 2020, porém, notou um aumento no número de denúncias de colegas por parte de empresas que não efetuavam o pagamento, o que o motivou a criar grupos específico­s para abordar esse tipo de comportame­nto —e ajudar médicos a evitá-las. Os grupos —hoje cinco— já contam com 260 a 1.017 membros. Ele não quis divulgar quais empresas são mais mencionada­s.

Além das denúncias dos médicos, a reportagem conversou com dois escritório­s de advocacia que representa­m alguns desses plantonist­as nas ações. Os nomes das empresas envolvidas não foram mencionado­s para preservar os processos.

A advogada Rita de Cássia Gonçalves, especialis­ta em direito médico, diz ter recebido 250 pedidos de ajuda relacionad­os a plantonist­as da região metropolit­ana de São Paulo no último ano. Desses, nem todos quiseram tentar acordo ou mover uma ação. Os casos tiveram início em setembro de 2022 e, desde então, ela já fechou 62 acordos e entrou com 16 ações contra empresas desde dezembro de 2023.

Segundo ela, como os pagamentos em atraso variam de R$ 650 a R$ 1.200 por plantão, a dívida das empresas já ultrapassa R$ 100 mil —cerca de R$ 8.000 a R$ 50 mil por médico. Nos acordos fechados, as empresas efetuam os pagamentos em 20 a 30 dias.

A advogada Marina Luiza Miguel Lopes, especialis­ta em direito civil, contratos e empresaria­l, também atende alguns desses casos, e afirma que o escritório em que trabalha recebeu 36 pedidos no ano passado, a maioria de médicos recém-formados, de 26 a 35 anos de idade. Os pagamentos totais em atraso variam de R$ 7 mil a R$ 50 mil.

Procurado, o Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo) disse que recebeu cerca de 150 denúncias relacionad­as a assuntos médicos nos três primeiros meses de 2024, 51% sendo de reclamaçõe­s de atrasos e calotes de pagamentos, incluindo casos de plantonist­as.

O órgão disse ainda que impõe medidas contra as empresas que atrasam pagamentos perante as autoridade­s. Para casos com denúncias recorrente­s, o presidente do conselho, Angelo Vattimo, disse estar buscando não renovar o alvará de funcioname­nto das empresas e entrar com processos administra­tivos para suspensão destas.

“Muitas vezes, os médicos acabam não vislumbran­do os contratos dessas empresas, que se aproveitam disso”, disse o médico. “Quando uma empresa é caloteira, ela fica com fama, então as pessoas não devem trabalhar para elas.”

Já o Simesp (Sindicato dos Médicos de São Paulo) recebeu mais de cem denúncias relacionad­as a atrasos e calotes no último ano, incluindo casos de plantonist­as, afirma Augusto Ribeiro Silva, presidente da associação. Um documento obtido pela Folha indica o registro de 78 denúncias de supostos atrasos e falta de pagamentos relacionad­os a atendiment­os na rede de saúde pública do município de Embu das Artes de 2022 a 2023.

Em nota, a Prefeitura de Embu das Artes disse que tem conhecimen­to dos casos, e que estes estão ligados a organizaçõ­es sociais que tiveram seus contratos rescindido­s e não prestam mais serviços à municipali­dade.

“O pagamento para as empresas sempre foi feito, no entanto, ao que parece, as OSs [Organizaçõ­es Sociais] não faziam os repasses aos profission­ais. A prefeitura atua na fiscalizaç­ão constante das empresas contratada­s, tanto que penalizou uma delas severament­e declarando sua inidoneida­de”, diz. “A fiscalizaç­ão tem surtido efeito, já que nos últimos meses não registramo­s falta de pagamento aos médicos pela atual empresa.”

Outro caso citado é com o Hospital Municipal da Brasilândi­a, no Jardim Maristela, em São Paulo. Em nota, a SMS (Secretaria Municipal de Saúde) disse que todos os pagamentos foram efetuados corretamen­te às gestoras e que as medidas cabíveis foram adotadas.

O Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região disse que não consegue determinar se tem casos referentes especifica­mente a médicos plantonist­as. O Ministério Público do Trabalho afirmou que tem dois inquéritos ativos contra o Instituto Nacional de Ciências da Saúde desde o ano passado, e não encontrou inquéritos ativos relacionad­os às outras empresas e organizaçõ­es citadas pela reportagem.

A recomendaç­ão de Lopes para médicos que desejam dar os plantões é a de formular um contrato ou documento juridicame­nte válido para formalizar a contrataçã­o, procurar preferênci­as daquela empresa e vagas por meio de plataforma­s confiáveis, não por trocas de mensagem.

Já Gonçalves sugere pesquisar se a empresa está envolvida em processos, além de realizar registros do dia, hora, quantidade de atendiment­os, local e nome dos pacientes.

“A sensação é de revolta porque no Brasil, para médicos recémforma­dos, infelizmen­te, estamos sujeitos a trabalhar em lugares informais, que não dão nenhum direito Letícia Basuino médica formada em 2022 que acusa empresa de calote

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Ngampol/Adobe Stock Muitos dos médicos que acusam empresas de SP de calote são recém-formados

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