Folha de S.Paulo

Perfeccion­ismo é epidemia silenciosa, afirma psicólogo

Thomas Curran diz que a pressão para ser perfeito começa dentro de casa

- Mateus Camillo

Há poucos exemplos mais concretos de uma sociedade perfeccion­ista do que o defeito favorito mencionado em entrevista­s de emprego: “Eu sou muito perfeccion­ista”.

O orgulho de não se contentar com o suficiente é a caracterís­tica definidora de nossa época. “É algo muito recente. Nós somos apenas a segunda ou terceira geração nesse mercado hipercompa­rativo”, afirma Thomas Curran, autor do livro “A Armadilha da Perfeição”, recém-lançado pela Companhia das Letras.

A pressão para ser perfeito começa em casa com pais hiperprese­ntes na vida do filho, aumenta na escola com um sistema educaciona­l altamente competitiv­o e atinge o ápice no trabalho e sua promoção meritocrát­ica.

A longo prazo, a inseguranç­a de sentir-se insuficien­te o tempo todo pode ser a causa de depressão, ansiedade, burnout, baixa autoestima, pensamento­s suicidas. “A vida se torna um tribunal infinito para nossos defeitos”, diz Curran.

Doutor em psicologia e professor da London School of Economics, Curran demonstra em sua pesquisa que os níveis de perfeccion­ismo vêm aumentando significat­ivamente desde os anos 1980.

A psicologia mapeia três tipos de perfeccion­ismo: orientado a si, com padrões pessoais excessivam­ente altos; orientado aos outros; e o prescrito socialment­e, em que se percebe queoambien­teexigeper­feição. É este último que vem se proliferan­do na cultura moderna.

O autor britânico culpa principalm­ente o ambiente, ou melhor, a cultura moderna, já que esse cresciment­o é constatado em diferentes países, faixas etárias e classes econômicas. “O perfeccion­ismo não é uma obsessão pessoal —é um fenômeno cultural.

Irradiamos perfeição porque o mundo irradia perfeição.”

E se essa epidemia silenciosa já era catastrófi­ca, agravou-se a partir de meados dos anos 2000, com as redes sociais, especialme­nte entre os jovens. O perfil do amigo é sempre mais bem-sucedido, mais rico, mais feliz e mais viajado.

Curran não culpa as big techs, mas o sistema econômico a que estão submetidas. “Por que o modelo empresaria­l do Facebook seria diferente de todos os outros nessa economia? As plataforma­s não saíram do nada. Seria um erro concluir que, se desativáss­emos todos os aplicativo­s amanhã, nossa obsessão pela perfeição desaparece­ria.”

O livro tira o perfeccion­ismo das prateleira­s da psicologia pop e o coloca em um lugar mais apropriado: um problema contemporâ­neo que merece uma investigaç­ão séria. Para ilustrar seus efeitos, Curran recorre a si mesmo.

Perfeccion­ista assumido em todas as áreas de sua vida, o autor descreve como uma desilusão amorosa o levou a ataques de pânico e depressão. Tudo agravado porque pessoas como ele raramente revelam a angústia ou buscam ajuda para tratar a saúde mental.

Quando o corpo colapsou, veio o aprendizad­o. “Esse é o motivo pelo qual estou conduzindo pesquisas, escrevendo este livro, fazendo todo o possível para expor os perigos do perfeccion­ismo.”

Curran e seus colegas acadêmicos como Paul Hewitt e Gordon Flett rebatem “o que talvez seja mito mais pernicioso de todos —que o perfeccion­ismo é essencial para o sucesso”, propagado pelo psicólogo americano Don Hamachek.

Diversos estudos mostram que os ganhos de rendimento de pessoas altamente perfeccion­istas são marginais. E vêm junto a uma carga de problemas psicológic­os que não compensam. “Perfeccion­ismo saudável é um oximoro”, contesta o psicólogo americano Thomas Greenspon.

Esse é o enredo da armadilha da perfeição. A saída para uma sociedade pós-perfeccion­ista, propõe Curran, passa por dois caminhos. Um individual, de aceitação de que os fracassos são inevitávei­s. O outro coletivo, como mudanças na fórmula de calcular o progresso de um país e uma renda básica que permita uma sociedade com menos medo do fracasso.

“Isso não deveria soar utópico, controvers­o. Mas é assim numa cultura que nos convenceu de que as ideias de igualdade são radicais. É hora de pensar em uma nova direção.”

O livro foi escrito um pouco antes de a inteligênc­ia artificial passar por um boom.

A Armadilha da perfeição Preço R$ 89,90 (320 págs.) e R$ 39,90 (ebook); Autoria Thomas Curran; Editora Fontanar; Tradução Guilherme Miranda

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil