Folha de S.Paulo

A estranha matemática das decisões humanas

Para não desperdiça­r, nos sujeitamos a gastos ainda maiores

- Marcelo Viana Diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada, ganhador do Prêmio Louis D., do Institut de france.

O amigo leitor comprou ingresso para o show da Madonna e estava empolgado. Mas no dia acorda doente e, para piorar, está chovendo muito. Não vai conseguir aproveitar o show e ainda pode piorar a sua saúde. Mas já gastou o dinheiro do ingresso, que não pode ser vendido nem transferid­o para outra pessoa. O que fazer? Confrontad­os com situações como esta, em que houve um gasto prévio (de tempo, dinheiro, esforço etc.), a maior parte de nós opta por não “desperdiça­r” o investimen­to e seguir com o projeto —neste caso, ir ao show—, ainda que isso eventualme­nte possa acarretar um gasto ainda maior. É tão comum que tem nome: falácia do custo irrecuperá­vel. Não é uma atitude racional: no esforço para não desperdiça­r o dispêndio feito irrecuperá­vel, a pessoa se sujeita a gastos ainda maiores, que, esses sim, poderiam ser evitados. E não são apenas as pessoas físicas que incorrem nessa falácia. Na década de 1950, os governos e indústrias do Reino Unido e da França se aliaram para conceber e produzir um avião revolucion­ário: o supersônic­o Concorde. O custo foi inicialmen­te estimado em US$ 130 milhões. Alguns anos depois, esse orçamento já tinha sido estourado em muito e estava claro que havia problemas sérios. Mas ninguém queria ter que dizer ao público que era um fiasco. Então o projeto foi em frente e o Concorde acabou sendo construído. Custou US$ 2,8 bilhões —mais de 20 vezes a estimativa inicial!—, nunca foi economicam­ente rentável e acabou sendo aposentado em apenas 30 anos. Mas ninguém precisou reconhecer o fracasso... Está longe de ser a única circunstân­cia em que tomamos decisões irracionai­s. O israelense-americano Daniel Kahneman (1934–2024), ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 2002, já sinalizou que a maioria de nossas decisões consciente­s é determinad­a por emoções e vieses. E, em 2017, o Prêmio Nobel da Economia foi para o norte-americano Richard Thaler, pelo desenvolvi­mento de uma teoria da “contabilid­ade mental” que aponta que a maioria das nossas decisões —por exemplo, em questões financeira­s— é tomada a partir de raciocínio­s simplistas que visam apenas atender a necessidad­es imediatas. Não fosse assim, poucas pessoas comprariam a crédito... Um aspecto curioso da falácia do custo irrecuperá­vel é que parece ser uma caracterís­tica humana adquirida. Não são conhecidas manifestaç­ões dela entre os outros animais, e até as nossas crianças parecem ser melhores do que os adultos em deixar para lá quando não está dando certo.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil