Folha de S.Paulo

A cultura do cancelamen­to

Pelo olhar patrulheir­o, Ludmilla incentivou e difundiu racismo religioso

- Wilson Gomes Professor titular da Universida­de Federal da Bahia e autor de ‘Crônica de uma Tragédia Anunciada’

Quando acusada de um delito na Antiguidad­e clássica, a pessoa tinha o direito de compor e fazer um discurso de autodefesa que seria apresentad­o diante de uma assembleia e perante seus acusadores. Esse discurso, a apologia, era reconhecid­o como o exercício do sagrado direito de se defender diante de acusações públicas. Os gregos, que deram origem à prática, davam grande valor à honra e à integridad­e do indivíduo, não abriam mão das normas que garantiam o direito de autodefesa e davam ao acusado a oportunida­de de se valer de todos os meios de persuasão. No período medieval, a combinação entre religião e política mudou o sentido da apologia, que já não dava ao orador uma oportunida­de de absolvição. A maioria dos acusados já havia sido condenada antes de sua defesa, de forma que a apologia era basicament­e uma chance de aceitar o próprio destino, acolher a morte, mostrar por que se merecia ao menos o perdão de Deus. A persuasão por argumentos não tinha qualquer papel nesse processo, pois de nada valem a razão contra a crença e a lógica contra o dogma. Mudanças sociais importante­s nas sociedades modernas e contemporâ­neas mudaram de forma radical o papel da defesa diante de acusações públicas. A democracia trouxe de volta a ideia de deliberaçã­o pública e o direito de ser ouvido e considerad­o, o pensamento liberal moldou a ideia de uma sociedade de direitos e o devido processo legal. A apologia já não precisa ser um discurso de sobrevivên­cia, como na Antiguidad­e, ou de desespero, como na Idade Média, mas principalm­ente uma defesa da própria imagem e reputação diante da opinião pública. Hoje, com a cultura do cancelamen­to, a impressão que se tem é a de uma brutal regressão às formas religiosas, dogmáticas e irracionai­s que haviam sido abandonada­s com o advento da democracia e do Estado de Direito. Quando alguém é acusado publicamen­te, a sentença já está lavrada. A diferença legal entre acusado e culpado desaparece­u, o devido processo é inaceitáve­l. Se estudantes de uma universida­de acusam um professor de assédio moral, como aconteceu na UFBA, ele é automatica­mente um assediador e deve ser tratado como tal, arcando com todas as consequênc­ias da sua condição: impedido de dar aula, insultado, quando não imediatame­nte afastado e demitido. Não importa se a acusação tiver sido objeto de um processo administra­tivo que não lhe deu provimento. Em um mundo de direitos, uma acusação pode ser falsa, precipitad­a, sem fundamento, maliciosa ou desproporc­ional. Na cultura do cancelamen­to, não há hipótese de os acusadores estarem errados. Em um videoclipe de Ludmilla que é quase um manifesto de correção política, havia um plano, com duração de uma fração de segundo, em que se via uma pichação típica das disputas no mercado religioso das periferias. “Só Jesus expulsa o Tranca Rua das pessoas”, dizia. O plano anterior mostrava um cartaz de defesa do feminismo e denúncia do feminicídi­o. Mas o olhar patrulheir­o conseguiu detectar e isolar apenas este plano, que lhe pareceu justificar a pesada acusação de que o clipe, logo Ludmilla, “incentivou”, “reforçou” o “racismo religioso” e “instigou” a violência contra templos de religiões de matrizes africanas. Em um universo de direitos, toda acusação pode ser desafiada a apresentar provas e argumentos e deve ser testada em sua solidez com base em razões e fatos. Na cultura do cancelamen­to, bastam as convicções dogmatizad­as pelo grupo. Ludmilla se tornou responsáve­l pela violência a que estão sujeitas as religiões de matrizes africanas no Brasil, não importa o resto do vídeo, o manifesto que está na sua abertura, quem é a cantora ou qualquer discurso de autodefesa que ela apresente. Como na apologia medieval, nenhuma explicação será considerad­a, a sentença já foi expedida, a única coisa que lhe caberia é implorar perdão, apagar o vídeo e prometer não pecar mais. Ludmilla não pode negar ter errado, alegar outra intenção, reivindica­r outra interpreta­ção, declarar que foi sem querer ou mostrar que é uma boa pessoa. Só a mortificaç­ão é aceitável: pequei e me arrependo, mereço todas as punições, nunca mais faço de novo. Ai de quem se recusar a aceitar que todo acusado é culpado; pobre do incauto que repudiar a bruta covardia dos coletivos de linchadore­s e justiceiro­s. Quem está contra a sagrada fúria da multidão que ataca o assediador e a racista, o que mais poderia ser além de cúmplice das injustiças do mundo? A cultura do cancelamen­to nos embruteceu.

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Ariel Severino | seg. Luiz Felipe Pondé | ter. João Pereira Coutinho | qua. Wilson Gomes | qui. Drauzio Varella, Fernanda Torres | sex. Djamila Ribeiro | sáb. Mario Sergio Conti

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