ANÁLISE Barbárie na Síria e indiferença ocidental mataram Aylan Kurdi
FOLHA
Aylan Kurdi é a criança síria de 3 anos que morreu na tentativa de sua família de chegar à Europa. A foto do cadáver na praia “chocou a Europa”, segundo o “Le Monde”, que deveria ter sido mais preciso: chocou o mundo.
“É a foto do fracasso da Europa, do mundo desenvolvido”, decretou Elena Valenciano, deputada socialista do Parlamento Europeu.
De acordo, Elena, mas vamos qualificar um pouco a afirmação. Primeiro, o fracasso da Europa vem de sua incapacidade de adotar uma política comum para lidar com o maior fluxo de migrantes desde a Segunda Guerra Mundial ( 1939/ 45).
Até aí, é fácil. O passo seguinte é mais complicado: como criar uma política comum — e necessariamente generosa— em tempos de escassez?
Mesmo um partidário sem restrições da generosidade, caso de Guillaume Duval, redator- chefe de “Alternatives Economiques”, admite: “Os receios suscitados por esse afluxo não são injustificados em sociedades minadas pelo desemprego de massa nas quais os sistemas sociais já estão submetidos a tensões importantes.”
A Alemanha, grande meca dos que buscam refúgio, é um exemplo da convivência entre o lado luminoso da reação à crise e o lado mais negro.
A estação de trens de Munique, ponto de chegada de milhares de refugiados, foi inundada de doações para que voluntários, também numerosos, distribuíssem aos recém- chegados.
Mas, simultaneamente, o Ministério do Interior informava que, de janeiro a agosto, ocorreram 336 agressões a abrigos para refugiados, o dobro das verificadas em 2014 e seis vezes mais do que em 2013.
Está claro que, mesmo que a Europa se tornasse um exemplo irretocável de solidariedade e de ação conjunta, ainda assim o drama tenderia a continuar.
Duval sugere um Plano Marshall, similar ao que os Estados Unidos implantaram na Europa do pós- guerra.
Reforça, em “El País”, Sami Naïr, professor de Ciências Políticas da Universidad Internacional da Andaluzia: “Se as políticas de contenção [ da migração] desabam hoje é principalmente porque levaram à acumulação de uma enorme demanda migratória insatisfeita, sem se dar conta de que a única maneira de limitá- la era o aumento significativo da ajuda ao desenvolvimento nos países não- comunitários, a fim de estabilizar ‘ in situ’ as populações.”
Bingo. O outro lado do fracasso do mundo desenvolvi- do é a sua incapacidade ou impotência para promover tal estabilização. O caso da Síria é, talvez, o mais exemplar: já há 4 milhões de refugiados, o equivalente a 17% da população. No Brasil, seria como se 3 de cada 4 habitantes do Estado de São Paulo fugissem para algum outro país.
Quem matou Aylan foi a barbárie em curso na Síria. O mundo desenvolvido, porém, é cúmplice por estar se revelando incapaz de contê- la, dominado pelo que o papa Francisco definiu como “globalização da indiferença”.
A foto de Aylan chacoalhou a indiferença, mas logo ela volta a predominar, até a próxima fotografia sinistra.