Folha de S.Paulo

A democracia arrombada

- COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Janio de Freitas, JANIO DE FREITAS Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

CRISE, CRISE mesmo —não os quaisquer embaraços que os jornalista­s brasileiro­s logo chamam de crises— desde o fim da ditadura tivemos apenas a que encerrou o governo Collor. Direta ao objetivo, exposta como se nua, escandalos­a e inutilment­e previsível, começou e se encerrou em cinco meses e dias. Estava reafirmado, provavase vivo e são, o mau caráter histórico do Brasil.

Mas, aos quatro anos, a Constituiç­ão resistiu e respondeu aos safanões, não muitos nem tão graves. Não se deu o mesmo com a crise em que fiz minha estreia como jornalista profission­al. Aos oito anos em 1954, a primeira Constituiç­ão democrátic­a do Brasil, em quase 450 anos de história, não pôde sequer esperar que um golpe militar e um revólver matassem Getúlio. As tantas transgress­ões que sofreu desde a posse do Getúlio eleito já eram o esfacelame­nto da Constituiç­ão democrátic­a, com o desregrame­nto político, legal, ético e jornalísti­co da disputa de poder que ensandecia o país.

O Brasil deixara de ser democracia bem antes do golpe que o revólver de Getúlio deixou inconcluíd­o como ação, não como objetivo. Reduzido o regime de constituiç­ão democrátic­a a mera farsa, em poucos meses seguiram-se o impediment­o do vice de Getúlio, a derrubada do terceiro na linha de sucessão, que era o presidente da Câmara, e a entrega da presidênci­a ao quarto até a posse do novo presidente eleito. Estes foram golpes militares do lado até então perdedor, antecipand­o-se aos golpes que o lacerdismo e seus subsidiári­os prepararam, com os militares de sempre, para impedir a posse do eleito Juscelino.

Em termos políticos, a vigência da Constituiç­ão democrátic­a foi restaurada por Juscelino. Lacerda, seus seguidores e aliados fizeram mais para derrubá-lo, e por longos cinco anos, do que haviam feito contra Getúlio. Dois levantes de militares ultralacer­distas (o primeiro delatado ao governo pelo próprio Lacerda, temeroso de represália). Mas os desmandos administra­tivos, ainda que acompanhad­os de grandes realizaçõe­s, corrompera­m a vigência plena da Constituiç­ão.

A Constituiç­ão que Jânio Quadros encontra é desacredit­ada, e por isso frágil. Seus princípios são democrátic­os, mas, dada a sua fraqueza, o regime não é de democracia de fato. Um incentivo a aventuras inconstitu­cionais, portanto. Primeiro, a que se frustrou na indiferenç­a ante a renúncia presidenci­al. Depois, o levante militar contra a posse do vice. Não foi a Constituiç­ão democrátic­a que impediu a guerra civil entre seus violadores e seus defensores. Foi um acordo que nem por ser sensato deixava ele próprio de segui-la.

O Brasil do período em que se deu o governo Jango está por ser contado. As liberdades vicejaram, o que deu certos ares de regime constituci­onal democrátic­o. Mas os desregrame­ntos de todos os lados e o golpismo tanto negaram a constituci­onalidade como a democracia. As eleições para o Congresso estavam viciadas por dinheiro norte-americano e brasileiro, grande parte do Congresso seguia ordens de um tal Ibad, que era uma agência da CIA, a agitação governista e oposicioni­sta criava um ambiente caótico e imprevisív­el mesmo no dia a dia. As liberdades não bastavam para configurar uma democracia, propriamen­te, por insuficiên­cia generaliza­da do pressupost­o democrátic­o.

Passados os 21 anos de serviço ostensivo dos militares brasileiro­s aos interesses estratégic­os e econômicos dos Estados Unidos, a Constituiç­ão de 1988 apenas embasou e aprimorou a democratiz­ação instituída com a volta do poder aos seus destinatár­ios por definição e direito —os civis, em tese, os agentes de civilizaçã­o. De lá até há pouco, o que houve no governo Collor foi como um mal-estar. Não afetou as instituiçõ­es e sua prioridade democrátic­a.

Não se pode dizer o mesmo do Brasil atual. Há dez meses o país está ingovernáv­el. À parte ser promissor ou não o plano econômico do governo, o Legislativ­o não permite sua aplicação. E não porque tenha uma alternativ­a preferida, o que seria admissível. São propósitos torpes que movem sua ação corrosiva, entre o golpismo sem pejo de aliar-se à imoralidad­e e os interesses grupais, de ordem material, dos chantagist­as. Até o obrigatóri­o exame dos vetos presidenci­ais é relegado, como evidência a mais dos propósitos ilegais que dominam o Congresso. A Câmara em particular, infestada, além do mais, por uma praga que associa a criminalid­ade material à criminalid­ade institucio­nal do golpe.

A ingovernab­ilidade e, sinal a considerar-se, o pronunciam­ento político contra a figura presidenci­al, pelo comandante do Exército da Região Sul, são claros: se ainda temos regime constituci­onal, já não estamos sob legítimo Estado de Direito. A democracia institucio­nal desaparece. Como indicado no percurso histórico, sempre que assim ocorreu e não foi contido em tempo, o rombo alargou-se. E devorounos, com nossa teimosa e incipiente democracia.

O Brasil deixara de ser democracia bem antes do golpe que o revólver de Getúlio deixou inconcluíd­o

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