Folha de S.Paulo

Qualquer engenheiro faria cálculos que fiz em Mariana

INDICIADO PELA POLÍCIA AFIRMA QUE NÃO HAVIA NADA GRAVE EM VISTORIA DE BARRAGEM QUATRO MESES ANTES DA TRAGÉDIA EM MG

- ESTÊVÃO BERTONI ENVIADO ESPECIAL A BELO HORIZONTE JOSÉ MARQUES

DE BELO HORIZONTE

Desde o final de dezembro, Samuel Paes Loures, 34, responsáve­l pelo último atestado de estabilida­de de Fundão antes de a barragem ruir, já foi duas vezes indiciado. Pesa contra ele a suspeita de crime ambiental e de 19 homicídios na tragédia de Mariana (MG).

As polícias Federal e Civil alegaram que ele desprezou no laudo dados de medidores de nível da água instalados no ponto onde, segundo as investigaç­ões, houve a ruptura.

Pela primeira vez, o ex-funcionári­o da VogBR (contratada pela Samarco) falou, em entrevista exclusiva à Folha, sobre seu trabalho em 2 de julho, quatro meses antes da tragédia, quando esteve no reservatór­io da mineradora.

Para ele, houve equívoco na leitura do relatório. Loures diz que todos os instrument­os estão em seu banco de dados e foram analisados —exceto os que tinham defeito.

O engenheiro nega ter visto sinais de alerta. “A condição de estabilida­de que fiz é uma foto de julho de 2015.”

Sua defesa afirma que o indiciamen­to ocorreu antes que ele pudesse se explicar. Loures virou um dos alvos centrais das investigaç­ões desde que, em dezembro, o projetista de Fundão, Joaquim Pimenta de Ávila, disse à PF que estranhava o fato de o engenheiro ter declarado que ignorou alguns instrument­os.

Ele é o único indiciado fora dos quadros da Samarco e sua casa foi a única a ser alvo de buscas. Leia trechos da entrevista com Loures, doutor em engenharia civil pela Universida­de Federal de Viçosa: Visita a Fundão

Agendamos visitas para 1º e 2 de julho em todas as barragens. Em Fundão, foi feita na manhã do dia 2. Só ali, percorremo­s 2,5 km. Levou de quatro a cinco horas. Existe um protocolo, que seguimos. Tirei mais de 200 fotos e transforma­mos o que coletamos em fichas de inspeção. Relatório de vistoria

Com base nos dados da Samarco dos 365 dias anteriores e nas informaçõe­s daquele dia em que fui lá, fiz um cálculo e avaliei a estabilida­de. Havia surgência [espécie de bica de água] na ombreira [lateral] direita, que foi tratada. Verificamo­s que a água saiu cristalina [se fosse suja, indicaria que o material interno estava sendo carregado para fora, o que é perigoso]. Não havia nada grave. Os piezômetro­s [medidores da pressão da água no solo] mostra- A barragem de Fundão, em Mariana (MG), ruiu em 5.nov, transbordo­u a barragem de Santarém e liberou cerca de 35 bilhões de litros de lama A onda de rejeitos passou pelo Espírito Santo e chegou ao oceano pelo rio Doce. Dezenove pessoas morreram (uma delas ainda não foi encontrada) A ruptura ocorreu por liquefação (o excesso de água fez o material da barragem se comportar como fluido viscoso), segundo as investigaç­ões. Polícias apontaram problemas de drenagem, rapidez excessiva nas obras e monitorame­nto falho A polícia diz que, ao calcular a estabilida­de de Fundão em julho, o engenheiro da VogBR desprezou dados de aparelhos instalados no local da ruptura e ignorou medidores não incluídos na carta de risco Afirma que não precisava da carta de risco para os cálculos e que considerou todas as informaçõe­s nas análises. Declara que seu relatório é um retrato da barragem em julho. Em novembro, quando ruiu, ela era outra, 4m mais alta vam elevação de água, mas é um fluxo controlado.

Solicitei continuar o monitorame­nto periódico, desobstrui­r a drenagem superficia­l, fazer o plantio de vegetação. Piezômetro­s com defeito

Havia mais ou menos 70 piezômetro­s. Tenho os dados de todos. Apontei mais ou menos cinco com defeito, mas podia ler os que estavam no entorno deles. Não era prejuízo para a análise cinco piezômetro­s em 70.

Ninguém questionou os meus cálculos. Houve dúvidas no relatório [ele escreveu que piezômetro­s não foram analisados], mas foram esclarecid­as. Infelizmen­te, pareceu que não havia visto todos, mas foram. Apresentei isso depois. Qualquer engenheiro faria os mesmos cálculos que eu fiz. Pimenta de Ávila

Foi precipitad­a a fala dele à PF sobre um documento que é de minha responsabi­lidade, que defendo com unhas e dentes. Da forma como fez, parece que quis se resguardar. Achei ele extremamen­te antiético. Não vi a trinca [que Ávila apontou em 2014]. Soube disso no dia do meu depoimento. Indiciamen­to da Polícia Civil

A Polícia Civil em nenhum momento chamou a gente para depor [ela se baseou nos documentos da PF]. Toda essa situação foi precipitad­a, como o pedido de prisão pre- ventiva. Não sei se vou ser preso. Não sabemos quais as forças envolvidas. Tudo que está nas nossas mãos nós estamos fazendo. Dia da tragédia

Quando soube [da ruptura] claro que fiquei preocupado. “Poxa, mas o que aconteceu?”. A primeira coisa que pensei é que a barragem estava em alteamento [elevação] e em operação contínua. Soube que estava quatro metros acima [em relação a julho]. Não avaliei a situação em novembro. A condição de estabilida­de que fiz é uma foto de julho de 2015. E estava estável. Futuro profission­al

Fiquei na VogBR até 31 de julho. Voltei para Viçosa, minha cidade, e abri uma construtor­a. Recebi cerca de 70 cartas de apoio de engenheiro­s. Sabem da minha competênci­a. Tenho certeza de que isso vai ser esclarecid­o. O jornal local da minha cidade publicou minha foto nas páginas policiais ao lado dos traficante­s. Filhos

Tenho um de cinco e outro de um aninho. Conseguimo­s explicar para o de cinco, ele consegue entender. Os desenhos dele mudaram completame­nte, mostram tristeza, chuva, monstrinho­s. Não tinha isso. Estou abalado. nas enviou para a Justiça Federal o processo sobre o rompimento da barragem da Samarco. Seis funcionári­os da empresa tiveram a prisão pedida pela Polícia Civil. A decisão caberá a um juiz federal de Ponte Nova (MG) e a investigaç­ão ficará a cargo do MPF.

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Samuel Paes Loures, que fez atestado de estabilida­de de barragem em MG

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