Qualquer engenheiro faria cálculos que fiz em Mariana
INDICIADO PELA POLÍCIA AFIRMA QUE NÃO HAVIA NADA GRAVE EM VISTORIA DE BARRAGEM QUATRO MESES ANTES DA TRAGÉDIA EM MG
DE BELO HORIZONTE
Desde o final de dezembro, Samuel Paes Loures, 34, responsável pelo último atestado de estabilidade de Fundão antes de a barragem ruir, já foi duas vezes indiciado. Pesa contra ele a suspeita de crime ambiental e de 19 homicídios na tragédia de Mariana (MG).
As polícias Federal e Civil alegaram que ele desprezou no laudo dados de medidores de nível da água instalados no ponto onde, segundo as investigações, houve a ruptura.
Pela primeira vez, o ex-funcionário da VogBR (contratada pela Samarco) falou, em entrevista exclusiva à Folha, sobre seu trabalho em 2 de julho, quatro meses antes da tragédia, quando esteve no reservatório da mineradora.
Para ele, houve equívoco na leitura do relatório. Loures diz que todos os instrumentos estão em seu banco de dados e foram analisados —exceto os que tinham defeito.
O engenheiro nega ter visto sinais de alerta. “A condição de estabilidade que fiz é uma foto de julho de 2015.”
Sua defesa afirma que o indiciamento ocorreu antes que ele pudesse se explicar. Loures virou um dos alvos centrais das investigações desde que, em dezembro, o projetista de Fundão, Joaquim Pimenta de Ávila, disse à PF que estranhava o fato de o engenheiro ter declarado que ignorou alguns instrumentos.
Ele é o único indiciado fora dos quadros da Samarco e sua casa foi a única a ser alvo de buscas. Leia trechos da entrevista com Loures, doutor em engenharia civil pela Universidade Federal de Viçosa: Visita a Fundão
Agendamos visitas para 1º e 2 de julho em todas as barragens. Em Fundão, foi feita na manhã do dia 2. Só ali, percorremos 2,5 km. Levou de quatro a cinco horas. Existe um protocolo, que seguimos. Tirei mais de 200 fotos e transformamos o que coletamos em fichas de inspeção. Relatório de vistoria
Com base nos dados da Samarco dos 365 dias anteriores e nas informações daquele dia em que fui lá, fiz um cálculo e avaliei a estabilidade. Havia surgência [espécie de bica de água] na ombreira [lateral] direita, que foi tratada. Verificamos que a água saiu cristalina [se fosse suja, indicaria que o material interno estava sendo carregado para fora, o que é perigoso]. Não havia nada grave. Os piezômetros [medidores da pressão da água no solo] mostra- A barragem de Fundão, em Mariana (MG), ruiu em 5.nov, transbordou a barragem de Santarém e liberou cerca de 35 bilhões de litros de lama A onda de rejeitos passou pelo Espírito Santo e chegou ao oceano pelo rio Doce. Dezenove pessoas morreram (uma delas ainda não foi encontrada) A ruptura ocorreu por liquefação (o excesso de água fez o material da barragem se comportar como fluido viscoso), segundo as investigações. Polícias apontaram problemas de drenagem, rapidez excessiva nas obras e monitoramento falho A polícia diz que, ao calcular a estabilidade de Fundão em julho, o engenheiro da VogBR desprezou dados de aparelhos instalados no local da ruptura e ignorou medidores não incluídos na carta de risco Afirma que não precisava da carta de risco para os cálculos e que considerou todas as informações nas análises. Declara que seu relatório é um retrato da barragem em julho. Em novembro, quando ruiu, ela era outra, 4m mais alta vam elevação de água, mas é um fluxo controlado.
Solicitei continuar o monitoramento periódico, desobstruir a drenagem superficial, fazer o plantio de vegetação. Piezômetros com defeito
Havia mais ou menos 70 piezômetros. Tenho os dados de todos. Apontei mais ou menos cinco com defeito, mas podia ler os que estavam no entorno deles. Não era prejuízo para a análise cinco piezômetros em 70.
Ninguém questionou os meus cálculos. Houve dúvidas no relatório [ele escreveu que piezômetros não foram analisados], mas foram esclarecidas. Infelizmente, pareceu que não havia visto todos, mas foram. Apresentei isso depois. Qualquer engenheiro faria os mesmos cálculos que eu fiz. Pimenta de Ávila
Foi precipitada a fala dele à PF sobre um documento que é de minha responsabilidade, que defendo com unhas e dentes. Da forma como fez, parece que quis se resguardar. Achei ele extremamente antiético. Não vi a trinca [que Ávila apontou em 2014]. Soube disso no dia do meu depoimento. Indiciamento da Polícia Civil
A Polícia Civil em nenhum momento chamou a gente para depor [ela se baseou nos documentos da PF]. Toda essa situação foi precipitada, como o pedido de prisão pre- ventiva. Não sei se vou ser preso. Não sabemos quais as forças envolvidas. Tudo que está nas nossas mãos nós estamos fazendo. Dia da tragédia
Quando soube [da ruptura] claro que fiquei preocupado. “Poxa, mas o que aconteceu?”. A primeira coisa que pensei é que a barragem estava em alteamento [elevação] e em operação contínua. Soube que estava quatro metros acima [em relação a julho]. Não avaliei a situação em novembro. A condição de estabilidade que fiz é uma foto de julho de 2015. E estava estável. Futuro profissional
Fiquei na VogBR até 31 de julho. Voltei para Viçosa, minha cidade, e abri uma construtora. Recebi cerca de 70 cartas de apoio de engenheiros. Sabem da minha competência. Tenho certeza de que isso vai ser esclarecido. O jornal local da minha cidade publicou minha foto nas páginas policiais ao lado dos traficantes. Filhos
Tenho um de cinco e outro de um aninho. Conseguimos explicar para o de cinco, ele consegue entender. Os desenhos dele mudaram completamente, mostram tristeza, chuva, monstrinhos. Não tinha isso. Estou abalado. nas enviou para a Justiça Federal o processo sobre o rompimento da barragem da Samarco. Seis funcionários da empresa tiveram a prisão pedida pela Polícia Civil. A decisão caberá a um juiz federal de Ponte Nova (MG) e a investigação ficará a cargo do MPF.