Audiência sobre a judicialização da ‘pílula do câncer’ tem vaia e bate-boca
Debate da OAB reuniu advogados, políticos, médicos e o criador da substância não aprovada
Pacientes choraram e vaiaram presidente do Conselho de Medicina de SP, que criticou aval da Justiça à droga
Audiência pública convocada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em São Paulo para discutir a “pílula do câncer” foi marcada por choro, vaias e pouco consenso entre os participantes nesta quinta-feira (17).
Essa é a primeira vez que o órgão paulista convoca uma discussão pública sobre o uso da fosfoetanolamina sintética —substância que ficou conhecida como a “pílula do câncer” por seus supostos efeitos contra a doença, mesmo antes da conclusão de estudos que comprovem sua segurança e eficácia. A droga começou a ser sintetizada pelo professor aposentado Gilberto Chierice, da USP.
O evento reuniu cerca de cem pessoas entre representantes dos conselhos de medicina e farmácia, políticos e advogados, além de pacientes e defensores da pílula e do próprio Chierice.
No último dia 8, o plenário da Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que autoriza o uso da “fosfo” em casos de câncer mesmo sem comprovação de que a substância funcione.
O texto foi encaminhado para votação no Senado. Se aprovado, segue para sanção presidencial.
“A motivação da OAB em discutir o assunto é que hoje a Justiça é a principal via de obtenção desse medicamento”, explica o professor de direito Celso Fiorillo, que esteve no debate.
Hoje, a USP é obrigada a acatar mais 15 mil liminares de juízes de todo o país, que entendem que é dever da universidade fornecer a “fosfo”.
A droga é produzida por Salvador Claro Neto, técnico do Instituto de Química de São Carlos, em um laboratório dentro da universidade.
As 9.600 cápsulas que Neto produz por mês dão conta de cerca de 200 pacientes, que recebem a substância de graça. Os demais são postos em uma fila de espera. Muitos acabam processando a universidade pela demora.
Mais da metade da procuradoria da USP está mobilizada para cuidar desse assunto. “É tudo muito aleatório, cada juiz requer uma quanti- dade diferente de pílulas. Alguns impõe multas para cada dia de atraso no fornecimento, os valores vão de cinco mil até cem mil reais”, explica o procurador da USP Aloysio Vilarino dos Santos.
Atualmente, a USP tem contas bloqueadas no valor de R$ 180 mil por conta de uma dessas ações. DEBATE Para Braulio Luna Filho, presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (CREMESP), “fosfo” tem gerado uma “judicialização da medicina”. “Juízes estão interferindo em um assunto que, do ponto de vista científico, é muito simples.”
“Não foram feitos estudos sequer para avaliar a toxicidade dessa substância. Não tem cabimento receitar isso, e o médico que o fizer será punido pelo conselho”, afirma.
Luna Filho chegou a afir- mar que a maioria das pessoas hoje tem “o entendimento de umcamponêsmedieval”.Saiu ao som de vaias discretas e sendo chamado de “Deus” após dizer que entendia que a discussão sobre o método de aprovaçãodeummedicamento fosse “sofisticada demais” para os presentes.
A procuradora Maria Paula Dallari Bucci, da USP, apresentou uma fotografia do laboratório onde a droga é sintetizada, dizendo que a universidade tinha vergonha de produzir medicamentos num local assim. “É mais sujo do que o banheiro da casa de vocês”, complementou Santos.
Já Chierice afirmou que a “fosfo” não é tóxica e que ela já foi testada em humanos na década de 1990, durante um convênio com o Hospital Amaral Carvalho, de Jaú (SP). O hospital não confirma.
Ele também diz que a fotografia do laboratório não cor- responde ao local onde a droga é sintetizada. “Esse é um outro laboratório do Instituto, um laboratório de polímeros que apenas parece sujo por conta das substâncias usadas lá”, diz.
Entre os defensores da substância estavam pacientes e familiares —vários deles se emocionaram ao falar sobre o tratamento—, além da vereadora de São Carlos Cidinha do Oncológico, do PHS (Partido Humanista da Solidariedade) e do deputado estadual Roberto Massafera (PSDB).
O meio termo ficou por conta do presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Martim Sampaio. Para ele, a discussão é complexa porque o doente tem direito de buscar tratamentos que ainda não foram reconhecidos, mas o Estado não pode difundir uma droga não regulamentada.