Mostra revê Brasil lírico de Di Cavalcanti
Exposição com 50 obras do modernista revela como ele arquitetou sua visão do país a partir do subúrbio carioca
Telas retratam o circo, cabarés e bares da Lapa e suas famosas mulatas para criar retrato de um país‘atravancadodevida’
No modernismo do país, Emiliano Di Cavalcanti talvez tenha sido o pintor mais pé no chão. Longe do olhar de denúncia de Portinari ou dos delírios plásticos de Tarsila, ele retratou o subúrbio dos pescadores, a noite da Lapa carioca, além de suas famosas mulatas, sempre entre a malícia e uma estranha melancolia.
Essas mulheres —fogosas, apáticas ou mesmo tristes— dominam a mostra do artista agora na galeria Almeida e Dale. Di Cavalcanti, que morreu aos 79, há 40 anos, é relembrado ali como o arquiteto de uma brasilidade lírica.
É fato que o “mulatistamor”, nas palavras de Mário de Andrade, entrou para a história lastreado pelo quase clichê de suas musas mestiças, legando à imagem do país certo fulgor sensual —e as 50 obras da mostra, algumas delas em rara aparição pública, em nada desmentem sua obsessão pelas mulheres.
Mas esses quadros também deixam ver como Di Cavalcanti construiu um universo enraizado até a alma nos cabarés da Lapa, nas praias e nos morros do Rio ao mesmo tempo em que replicava influên- cias da vanguarda europeia.
Estratégias visuais de Picasso, Léger e Lhote, que o artista conheceu em Paris, ressurgem traduzidas para a realidade carioca nessas telas criadas entre 1925 e 1949, época em que ele mergulhou fundo no subúrbio para extrair dali seus arquétipos nacionais.
“Ele procura o suburbano, as pessoas às margens da cidade”, diz Denise Mattar, que organiza a mostra. “Existe um encanto por esse submundo. O Rio do Di Cavalcanti é São Cristóvão, Cosme Velho, Catete, não é o Rio zona sul. É uma visualidade que representava o país inteiro.”
Tanto que os bailes e os botecos que retratou transbordam de vida. São quadros cheios de loiras e morenas vo- luptuosas, soldados e músicos —toda a fauna da noite num turbilhão de raças e cores.
Noutra ala da mostra, suas vistas de praias e pescadores no ancoradouro têm figuras que se tornam mais estilizadas ao longo dos anos. Elas vão perdendo traços específicos para estruturar uma representação alegórica do povo. Suas cores nessas obras também ficam mais luminosas e vibrantes, mas a paisagem é a mesma, com a mesma brisa.
Esse território sereno, visto aqui em contraponto às cenas tórridas de circos e cabarés, arremata a imagem do Brasil na visão de Di Cavalcanti. É um lugar “atravancado de vida e de peso humano”, como escreveu o crítico Mário Pedrosa, lembrando o apego do artista, “demasiado sensorial”, à presença humana.
“Na obra do Di, há uma liberdade que vem do conhecimento do povo. É o que ele chama de realismo mágico”, diz Mattar. “Não é um olhar de fora, é um olhar de dentro.”
É também um olhar parecido ao que ele lança às mulheres. Mesmo que dê nome a algumas dessas personagens, como sua mulher Noemia ou a mulata Abigail, elas transcendem sua identidade e se tornam universais, emblemas de um país tropical. QUANDO de seg. a sex., 10h às 18h; sáb., 10h às 14h; até 28/5 ONDE galeria Almeida e Dale, r. Caconde, 152, tel. (11) 3887-7130 QUANTO grátis 9.000 obras ao longo da vida. Um livro que será lançado em abril pela editora Capivara terá reproduções de 200 delas, além das críticas mais relevantes escritas sobre o artista por nomes como Mário Pedrosa e Sérgio Milliet. Será o primeiro passo para um esforço de catalogar toda a obra do artista, projeto deve ser tocado por Denise Mattar e Elizabeth Di Cavalcanti, filha do pintor.