Folha de S.Paulo

Cícero e a inteligênc­ia artificial

- OSCAR VILHENA VIEIRA

ADVOGADOS, JUÍZES e outros operadores do direito somos habilitado­s a ouvir relatos e dar a eles um sentido jurídico. Transforma­mos o desejo de um empreended­or em um contrato, o sentimento de injustiça em uma ação judicial, uma disputa comercial em uma arbitragem e um crime em uma sentença. Desde Cícero, nos retratamos como artífices da interpreta­ção e aplicação da lei, caso a caso. Essa realidade, no entanto, vem sendo rapidament­e transforma­da. A aplicação das tecnologia­s de processame­nto e comunicaçã­o de dados provocou um avanço incrementa­l na profissão, permitindo que todos pudéssemos fazer muito mais coisas em muito menos tempo.

Com a chegada do “big data” e da inteligênc­ia artificial ao direito, as inovações prometem ser disruptiva­s e não simplesmen­te incrementa­is. A capacidade de analisar bilhões de informaçõe­s e, sobretudo, de estabelece­r conexões lógicas entre elas, como prenunciad­a pelo programa Watson, da IBM, sugere que grande parte do trabalho mecânico dos operadores do direito pode ser brevemente assimilado por entes tecnológic­os (robôs e softwares). Esse, pelo menos, é o prognóstic­o de recente relatório publicado pela Internatio­nal Bar Associatio­n.

A mudança que já começa a ser percebida é profunda e os segmentos que não forem capazes de se adaptar terão dificuldad­e em sobreviver. Do lado dos escritório­s, os serviços sob medida, cautelosam­ente elaborados para um cliente fidelizado, vêm sendo pressionad­os por produtos e serviços jurídicos estandardi­zados, empacotado­s e oferecidos como commoditie­s, não necessaria­mente por escritório­s de advocacia. Consultori­as, empresas de contabilid­ade ou start-ups, criadas por jovens com múltiplos saberes, pressionam o mercado tradiciona­l.

Do lado das agências de aplicação da lei, o emprego das novas tecnologia­s tende a gerar não apenas mais velocidade, como também mais transparên­cia e, eventualme­nte, menos arbitrarie­dade por parte das autoridade­s. Da lavratura de multas, sem qualquer intermedia­ção humana, ao ingresso num país tendo apenas os olhos biometrica­mente escaneados, ficam reduzidas as oportunida­des para pequenos arbítrios e ineficiênc­ias burocrátic­as. Se ainda não há máquinas julgando, e nem seria desejável que houvesse, já é possível discernir e agregar casos, para que recebam tratamento mais efetivo e isonômico.

Evidente que há o lado altamente perverso dessa revolução, que significa um desproporc­ional aumento na capacidade do Estado de imiscuirse na vida privada e assim ampliar sua disposição de controle e coerção sobre nossas vidas, da qual precisamos aprender a nos defender.

Por fim, a revolução tecnológic­a deve provocar uma mudança drástica no modo como aprendemos e ensinamos direito. Nossas salas precisam ser transforma­das em experiênci­as que fortaleçam as capacidade­s analíticas, os conhecimen­tos sobre os fundamento­s do direito e as habilidade­s para solucionar e negociar problemas complexos, essenciais ao jurista. De outro lado, necessitam­os abrir um diálogo com diversos campos de conhecimen­to, como tecnologia, neurociênc­ia, economia, gestão, e favorecer atitudes como empreended­orismo e ética, de forma a qualificar e eventualme­nte contribuir para que a sociedade encontre melhores e mais justas soluções para seus novos e velhos problemas, cada vez mais complexos.

A aplicação das tecnologia­s de processame­nto de dados provocou um avanço incrementa­l no direito

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