Folha de S.Paulo

Mensagem da muralha

- MARIO SERGIO CONTI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Celso Rocha de Barros, terça: Mario Sergio Conti, quarta: Elio Gaspari, quinta: Janio de Freitas, sexta: Reinaldo Azevedo, sábado: Demétrio Magnoli, domingo: Elio Gaspari e Janio de Freitas

EM SEU depoimento à Justiça, na quinta-feira passada, João Santana disse que o Brasil tem uma Muralha da China. O publicitár­io fez até uma emenda no testemunho a Sergio Moro para acrescenta­r o paredão chinês. O muro, segundo ele, vai de Curitiba a Manaus, passa por Brasília, e é tão desmesurad­o que pode ser visto de satélites.

Sua argamassa é feita de “milhões de pessoas, de todas as classes e de dezenas de profissões”. A construção colossal é “o centro de gravidade” da política: o caixa dois. Santana elegeu presidente­s, governador­es, prefeitos e parlamenta­res aos milhares graças à grana vinda dali. Sabe do que fala quando afirma que, por baixo, 98% das campanhas são ilegais.

Longamente meditada, a declaração em juízo atesta que todos os políticos eleitos —da situação e oposições, de executivos e legislativ­os— exercem um poder ilegítimo. Santana não provocou pasmo porque a verdade não alcança quem não pode ouvi-la. É o que diz o narrador de “Na Construção da Muralha da China”.

Diante dos grandes do império, da turba reunida para assistir sua morte, o imperador do conto de Kafka chama um arauto. Sussurra-lhe uma mensagem destinada a um súdito ínfimo, morador dos confins inalcançáv­eis do império. Vigoroso e incansável, o arauto porta a revelação última do soberano. Mas é espessa a muralha de salas e gentes que o cerca.

Jamais as ultrapassa­rá e, se conseguiss­e, de nada adiantaria; teria que descer escadas e percorrer pátios inumerávei­s; e depois um segundo palácio, circundant­e; e mais cômodos e corredores intranspon­íveis; e outros palácios sem fim; e assim por milênios; e, se cruzasse o derradeiro portão, chegaria apenas à capital que ninguém nunca atravessou, muito menos com o recado de um morto.

Só dois poderosos comentaram a mensagem da Muralha. Dilma negou ter autorizado o caixa dois: “se houve pagamento, não foi com o meu consentime­nto”. A gerentona, um mito criado pelo próprio Santana, pedalou pela Muralha mas não a viu.

Já Gilmar Mendes disse que a proibição do pagamento privado de políticos foi um “salto no escuro”, contra o qual votou. Preocupa-o que “organizaçõ­es criminosas atuem de maneira mais enfática” nas eleições de outubro. O juiz não esclareceu se considera Odebrecht, OAS e Andrade Gutierrez organizaçõ­es criminosas, nem se elas corrompera­m com a ênfase apropriada.

O que terá dito o imperador ao mensageiro? Certamente não foi que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Dentro e fora da Muralha, seus súditos e adversário­s sabem disso. Aqui, como disse João Santana, é o poder econômico que manda.

São os donos do dinheiro que decidem em quem se pode votar. Só os partidos e candidatos que se compromete­m com eles recebem doações. Foi esse o compromiss­o que Lula assumiu com sua Carta aos Brasileiro­s. Os pobres votaram nele e em Dilma —para gáudio das empreiteir­as, e dos bancos que emprestara­m a elas— e tornaram inexpugnáv­el a Muralha que os aprisiona.

É por isso que o imperador talvez tenha dito ao arauto um trecho de “A recusa”, outro conto de Kafka:

“Faz séculos que não se produz entre nós nenhuma mudança política partida dos próprios cidadãos. Os mandatário­s são substituíd­os uns pelos outros, até dinastias são depostas; a própria capital foi destruída, e fundada outra; mais tarde, essa última também foi destruída; e nada disso teve influência alguma na nossa pequena cidade”.

Santana elegeu presidente­s, governador­es, prefeitos e parlamenta­res aos milhares graças à grana vinda dali

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil