Folha de S.Paulo

O que a gente sonhou

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Leio estarrecid­a a notícia de que a educadora Pilar Lacerda, a ativista por uma educação inclusiva Maria Antonia Goulart e o senador Lindbergh Farias foram agredidos fisicament­e quando jantavam num restaurant­e no Rio, por suas convicções políticas.

Lembrou-me a cena do belíssimo livro autobiográ­fico de Stephan Zweig, “O mundo de ontem”, em que, numa Áustria pré-nazista, grupos de jovens violentos davam mostras públicas de sua virilidade.

Já há algum tempo, sinto uma polarizaçã­o incompatív­el com o que acreditava ser o século 21. Ninguém tem razão e todos tentam vencer no grito. O outro, o não portador da verdade, tem falhas morais que eu não tenho, de acordo com uma lógica onipotente. O outro é o problema, num bipolarism­o que Jonathan Sacks descreve como a raiz da violência.

E a construção do futuro do país? Difícil, neste clima, discutir propostas para melhorar a saúde, a educação, a mobilidade urbana, a cena cultural ou outros temas que deveriam marcar a agenda de debates, nesta semana em que se elegem muitos dos prefeitos do país.

O debate sobre a reformulaç­ão do ensino médio, por exemplo, proposta inicialmen­te pelo governo anterior e retomada agora, se dá num clima de acusações mútuas, meias verdades e defesa de agendas corporativ­istas. Continuamo­s neste flá-flu político que, aparenteme­nte, dada a ruptura de um pacto anterior, ninguém consegue evitar.

E, no entanto, fomos juntos às ruas pedir, nos anos 70, o fim da ditadura. Tivemos sonhos de um Brasil mais justo, com mais equidade, e em que a discussão saudável deveria se dar tanto no Parlamento como em espaços comunitári­os. Juntos construirí­amos uma política educaciona­l diferente.

E, de fato, começamos a fazê-lo: colocamos todas as crianças na escola, passamos a avaliar a aprendizag­em, priorizamo­s a inclusão e a educação infantil. Lutamos pela reforma sanitária, em que centros de saúde concentrar­iam a atenção primária e os hospitais não se entupiriam de pacientes mal atendidos. Abrimos espaços para a avaliação da qualidade das instituiçõ­es superiores e para maior acesso às universida­des.

Avançamos em algumas agendas, novos problemas se apresentar­am e outros não conseguimo­s resolver. Mas outras gerações poderiam fazê-lo.

“O que foi feito amigo, de tudo o que a gente sonhou?” — tocavam as rádios no mundo pré-internet, adiantando um lamento que sinto na alma a cada vez que leio sobre um episódio como o ocorrido no Rio, seja de um lado ou de outro deste feio ambiente bipolar em que o Brasil se encontra.

Possam as eleições de domingo iniciar um novo ciclo, em que as atenções foquem mais a busca de um novo pacto pela construção do futuro.

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