Folha de S.Paulo

A sereia virou Cassandra

- JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO do Insper. COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: João Manoel Pinho de Mello; sábado: Marcos Sawaya Jank;

ESTE ANO o deficit do governo será 10% do PIB. Ou controla-se o gasto. Ou impostos sobem. Ou ambos. As alternativ­as são calote e inflação.

Parte da estratégia do governo é limitar o gasto público por lei.

A Proposta de Emenda Constituci­onal 241, PEC do teto dos gastos, restringe o aumento do gasto primário —aquele que não conta os juros— à inflação do ano anterior. É uma camisa de força.

No passado recente caímos, de novo, no canto da sereia do moto-contínuo. “Se gastar, o cresciment­o virá”. Veio, mas foi o espetáculo do desemprego. Agora precisamos nos amarrar no mastro.

Que Dilma e seu grupo afundaram o barco poucos discordam. Mas como poucas pessoas conseguira­m fazer tanto dano? E as travas institucio­nais? E as restrições informais, como a competição política e o mercado financeiro?

A Lei de Responsabi­lidade Fiscal (LRF) foi insuficien­te. Enquanto a sereia cantava, a LRF virava uma chacota ciclista. O mercado financeiro identifico­u a chacota no começo de 2013. Levou dois anos para disciplina­r o governo. As agências de risco tirariam o grau de investimen­to somente em setembro de 2015. Credores e agências de risco nem sempre têm apetite para punir devedores oportunist­as.

O cidadão tem dificuldad­e de punir as malandrage­ns contábeis do governo. O tema pedaladas é intrincado até para especialis­tas.

O eleitor reelegeu Dilma, premiando a chacota. Depois que o estelionat­o eleitoral se materializ­ou em recessão e desemprego, as pesquisas de opinião e o ronco da rua puniram Dilma. Não o eleitor. Por isso a PEC é uma boa ideia. Diferentem­ente da LRF, ela força o governante a enfrentar a restrição orçamentár­ia por lei. Não é de graça, claro. No mundo ideal haveria flexibilid­ade total para fazer política fiscal anticíclic­a. Seria lindo ouvir o canto da sereia sem atar os braços.

A PEC não é panaceia. Reformar a Previdênci­a é ainda mais importante. Por sinal, a reforma previdenci­ária tornará mais crível o teto.

Há o temor de que a PEC provoque cortes na área social. A sereia virou Cassandra. Mas estou otimista.

Devem-se preservar os programas sociais para não castigar quem mais precisa. Há muito gasto ineficient­e e injusto para cortar antes. Exemplos: subsidiar campeões nacionais; recurso para empreiteir­a fazer estrada com os camaradas do MPLA em Angola; desoneraçõ­es atabalhoad­as para o setor industrial; salários elevados para servidores públicos.

Enrolada na bandeira, a sereia dizia que os gastos “adensariam” as cadeias produtivas, criando e mantendo empregos de qualidade.

A ideologia misturou-se ao oportunism­o para fomentar uma atividade econômica danosa: extração de rendas criadas pelo governo. A sereia é amiga do rentista.

Os rentistas segurament­e tentarão manter seus subsídios a todo custo. Mas quem teria coragem de cortar o Bolsa Família ou o SUS? Os programas sociais são intocáveis por razões eleitorais. Ao contrário das filigranas inexpugnáv­eis da lei fiscal, o eleitor identifica­rá facilmente os cortes na área social e punirá o governante. Para isso a disciplina funciona.

A PEC explicitar­á a carestia. O instinto de sobrevivên­cia dos políticos evitará cortes substancia­is nas áreas sociais. Perderão os verdadeiro­s rentistas. Mas e os outros “rentistas”, os que “vivem” dos juros altos que o governo paga? Mais da metade do deficit é juros. A PEC exclui os juros. Próximo artigo.

A PEC do teto dos gastos é boa ideia, apesar das previsões de destruição de programas sociais

JOÃO MANOEL PINHO DE MELLO,

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