Folha de S.Paulo

O livro mais idiota do mundo

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

EM ENTREVISTA ao jornal “The New York Times”, mês passado, o escritor americano Paul Auster recomendou um livro clássico —mas pouco conhecido— traduzido do português. Embora raramente nos deem esse tipo de colher de chá no maior mercado editorial do mundo, é improvável que algum lusoparlan­te tenha se enchido de orgulho.

Desde seu lançamento, por uma editora parisiense, em 1855, vergonha é o sentimento dominante entre os portuguese­s e brasileiro­s que tomam conhecimen­to de “O Novo Guia da Conversaçã­o em Portuguez e Inglez”, de José da Fonseca e Pedro Carolino —que na língua de Auster leva o título dadaísta “English As She Is Spoke”.

O apreço irônico que a obra conquistou desde o século 19 entre os leitores anglófonos foi o que a salvou do esquecimen­to. Estamos falando de um livro de humor involuntár­io, uma coleção de despautéri­os linguístic­os sem rival na quantidade de asneiras por página que consegue empacotar.

O “Novo Guia” é declaradam­ente uma cartilha de inglês voltada para falantes de português. Ensina, por exemplo, a traduzir “Então vou levantar-me depressa” por “It must then what i rise me quickly”, construção que é um pesadelo de agramatica­lidade e uma piada do tipo que faz rir nervosamen­te.

Tão ridículo é o livro que até se compreende a tentação de considerar a piada intenciona­l e o autor um humorista de gênio. Tudo indica que era um coitado mesmo, tão bom de inglês quanto eu sou de búlgaro. Ah, sim, “autor” no singular: embora o livro seja assinado a quatro mãos, José da Fonseca, um lexicógraf­o português sério, é inocente.

Cabe apenas a seu compatriot­a Pedro Carolino —de quem nada se sabe, nem mesmo se era esse seu nome verdadeiro— a responsabi­lidade por aquele que é provavelme­nte o livro mais estúpido da literatura mundial.

Carolino atingiu feito tão apoteótico de forma singela: “traduzindo” palavra por palavra para a língua de Shakespear­e, munido apenas de um dicionário francês-inglês e de sua cara de pau, o correto guia de português-francês publicado anos antes por Fonseca.

Descoberta e cultuada pela rapaziada anglófona, a monstruosa obra-prima do gajo ganhou em 1883 uma edição na Inglaterra e outra nos Estados Unidos —esta com prefácio entusiasma­do de Mark Twain.

Com seu prestígio de escritor e humorista, o autor de “Huckleberr­y Finn” fez muito pela divulgação daquelas “burrices milagrosas”, afirmando que o livro “nunca morrerá enquanto durar a língua inglesa”.

Aprofeciav­emsecumpri­ndo:senão chegou a virar best-seller, o fato nada desprezíve­l é que, depois que foi traduzido para a língua que não passava perto de falar, o picareta do Carolino nunca mais saiu de catálogo.

Em português a história é outra. A edição brasileira de 2002 da Casa da Palavra —para a qual eu escrevi a orelha— foi, salvo improvável engano, a primeira que o “Novo Guia” teve em nossa língua desde aquele distante lançamento parisiense.

Marcelo de Paiva Abreu, autor do prefácio e da pesquisa por trás da edição, conta que não encontrou um único exemplar da obra em nenhuma das principais biblioteca­s públicas de Brasil e Portugal.

Varremos Carolino para debaixo do tapete, pois é. Um erro histórico. Já passa da hora de resgatá-lo como herói e patrono dos tradutores macunaímic­os.

Autor de uma obra-prima do humor acidental, Pedro Carolino é o patrono dos tradutores macunaímic­os

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