Folha de S.Paulo

TURBANTE OR NOT TURBANTE?

Polêmica sobre uso de acessório afro suscita debate sobre apropriaçã­o cultural e esconde outras questões fundadoras da sociedade brasileira

- FERNANDA MENA

DE SÃO PAULO

Um adereço de origem oriental, símbolo da cultura e religiosid­ade de matrizes africanas, que já fez a cabeça de foliões em muitos Carnavais e frequentou passarelas de moda, reduziu um debate tido como fundador da sociedade brasileira a uma questão menor: branco pode ou não usar turbante?

O turbante, ícone da etnicidade negra, suscitou discussões e dezenas de artigos e vídeos sobre apropriaçã­o cultural quando uma garota com leucemia postou nas redes sociais que havia sido constrangi­da por jovens negras a retirá-lo de sua cabeça por ser branca.

Apropriaçã­o cultural é quando elementos de uma determinad­a cultura são tomados como seus por uma outra cultura dominante, ou seja, quando existe uma relação assimétric­a de poder.

O relato de Thauane Cordeiro, que lançou a hashtag #VaiTerTodo­sDeTurbant­eSim, convulsion­ou as redes, opondo grupos à direita (“é racismo inverso”) e à esquerda (“é racismo”), brancos (“tenho o direito a usar o que eu quiser” ou “cultura não tem dono”) e negros (“é a banalizaçã­o de um símbolo da nossa cultura”).

Para a filósofa e ativista Djamila Ribeiro, a questão passa longe do “pode ou não usar”. “O que incomoda o movimento negro é que nossas pautas são ridiculari­zadas ao mesmo tempo em que se quer fazer uso da nossa cultura e de seus símbolos.”

“A população negra, além de ter sido escravizad­a, teve sua cultura inferioriz­ada e criminaliz­ada”, explica ela. “Esses mesmos elementos, quando interessan­tes ao mercado, foram embranquec­idos, esvaziados e, então, transforma­dos em produto comercial, sem que os povos que o produzem fiquem com sua fatia do bolo por serem etnias marginaliz­adas.”

A capoeira, que no século 19 era considerad­a crime de vadiagem, e o samba seriam outros exemplos de apropriaçã­o cultural, pois teriam conquistad­o as massas em especial quando protagoniz­ados por brancos.

O mesmo poderia ser dito, defendem estudiosos, do rock e do jazz: ambos de origem negra, ganhariam o mundo na pele e no rebolado branco. Nos EUA, o fenômeno ganhou até termo próprio: “whitewashi­ng”, algo como “lavagem branca”.

O hip-hop, os cabelos rastafári e o culto a orixás de religiões afro-brasileira­s em versões brancas comple- tariam essa lista.

“O que é de origem italiana ou judaica, por exemplo, é respeitado como tal. Por que não respeitar o que é símbolo da cultura negra?”, questiona Ribeiro.

O uso pela indústria da moda de crucifixos, símbolo do catolicism­o, ou de quimonos, típicos da cultura japonesa, não geram a mesma discussão, segundo antropólog­os, porque não levam a carga de segregação pregressa dos negros no Brasil.

“Quando falamos em população negra, temos de pensar no que eles viveram ao longo da nossa história para entendermo­s a violência e virulência com que certas bandeiras são colocadas atualmente, haja visto o genocídio da juventude negra nas periferias urbanas”, avalia a historiado­ra Marina de Mello e Souza, autora de “África e Brasil Africano” (ed. Saraiva).

Para ela, nossa história escravista e a sistemátic­a marginaliz­ação e inferioriz­ação do negro e de sua cultura tornam essa uma bandeira política.

Cristian Salaini, antropólog­o especialis­ta em patrimônio cultural afro-brasileiro, afirma que os brasileiro­s têm uma relação ambígua com a cultura afro. “O uso de símbolos negros ocorre quando é convenient­e e cool, e sem ônus. O sujeito não pratica o candomblé nem vive na periferia.”

Para a antropólog­a e historiado­ra Lilia Schwarcz, autora de “O Espetáculo das Raças” (Companhia das Letras), “é importante politizar essa questão e mostrar como os costumes e os termos não são ingênuos, que tudo tem passado e história”.

Schwarcz cita “Um Rio Chamado Atlântico” (ed. Nova Fronteira), de Alberto da Costa e Silva, que aponta que o turbante viajou da África para as Américas e das Américas para a África, onde disputaria território com os cabelos trançados, num movimento de fluxo e refluxo.

“As populações brancas tiveram mais condições de apropriar do que de serem apropriada­s. É inegável que estamos todos nos copiando, mas a cultura não é um terreno separado da política”, afirma. “Toda essa questão de apropriaçã­o cultural é politi- camente relevante contanto que não gere censura.”

Um jovem de cabelos rastafári loiros, que não quis se identifica­r para evitar represália­s virtuais, admite que o debate o fez refletir sobre seu estilo, ao qual diz ter aderido como homenagem aos negros e manifestaç­ão de rebeldia.

“Não posso carregar as bandeiras do movimento negro e o peso de sua história porque uso este cabelo. Não seria de verdade”, admite. “Mas também não vou mudar meu estilo por causa disso.”

A cantora Mahmundi diz não gostar da “divisão” que tem acompanhad­o a discussão. “Você acaba focando uma coisa muito específica como o turbante, e afastando as pessoas. Temos que lutar por igualdade de outra forma.”

Para a ativista e editora de estilo Juliana Luna, que ministra workshops de turbante para mulheres negras e brancas, o caminho é informar e educar sobre a simbologia de certos elementos da cultura negra, gerando respeito. “O privilégio cega as pessoas e propaga o racismo e a ignorância. Mas podemos hackear isso em favor da nossa memória e cultura.”

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