Folha de S.Paulo

Frutos muito estranhos

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SÃO PAULO - Movimentos de defesa de minorias agora estrilam quando um membro dos chamados grupos dominantes se utiliza (“se apropria”, na linguagem dos militantes) de um elemento icônico de sua cultura. No Brasil, uma adolescent­e branca que havia perdido seus cabelos por causa de um tratamento contra o câncer foi duramente repreendid­a por ativistas negros por ter se exibido com um turbante afro.

Compreendo a necessidad­e dos movimentos de buscar bandeiras capazes de mobilizar a militância —e não há nada como uma polêmica cultural para fazê-lo. Também concordo que é importante discutir a história e a dimensão política de símbolos culturais, mas receio que vivamos num mundo onde as interações entre povos foram tantas e tão intensas que nenhum grupo pode reivindica­r direitos exclusivos sobre nada.

O melhor exemplo de quão furado pode ser o discurso da apropriaçã­o cultural vem dos EUA. Se você quiser pôr americanos para discutir acalo- radamente, é só perguntar se brancos têm o direito de cantar “Strange Fruit”, a música que se tornou o emblema máximo da luta contra o racismo no país. A canção, imortaliza­da na voz de Billie Holiday, é mesmo de arrepiar. Ela descreve corpos de negros que foram linchados e pendurados numa árvore como frutos.

O problema é que “Strange Fruit”, considerad­a a canção do século 20 pela “Time” e sempre incluída nas listas de músicas que mudaram o mundo, foi escrita e composta por Abel Meeropol, um autêntico judeu do Bronx —e com simpatias comunistas. Ele também acabou adotando os filhos dos Rosenberg, depois que o casal foi para a cadeira elétrica.

Podemos ir mais longe e dizer que a própria história é uma história de sucessivas apropriaçõ­es. Tomemos o caso da escrita. Embora ela seja hoje quase universal, foi inventada de forma independen­te apenas três ou quatro vezes e depois “apropriada” por todas as culturas não ágrafas. helio@uol.com.br

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