Folha de S.Paulo

A democracia precisa de um divã

- CLÓVIS ROSSI

NO DIA da eleição na Holanda (quarta, 15), o jornal digital “Dutch News” publicou o texto “12 motivos para gostar da Holanda”.

Eu, que já gostava antes, quase liguei imediatame­nte para a KLM para reservar uma passagem para Amsterdã.

Em resumo, a economia vai muito bem, o desemprego é quase residual, mesmo entre os jovens (que, no resto da Europa, sofrem com falta de oportunida­des), cada vez mais mulheres estão na força de trabalho, a criminalid­ade, já reduzida, caiu mais (só dois assassinat­os por semana em 2016).

Consequênc­ia inexorável: “Os holandeses estão entre os povos mais felizes do mundo. Pesquisa do ano passado mostrou que 9 de cada 10 adolescent­es [tribo inclinada às dúvidas existencia­is] estão satisfeito­s com a vida. E os adultos também têm sentimento­s muito positivos”.

Nesse paraíso, é óbvio que o governo de turno —que geralmente é crucificad­o ou beatificad­o conforme as coisas vão mal ou vão bem no país— deveria ter dado um passeio nas urnas, certo?

Errado. É verdade que o principal partido da coligação governista, o do primeiro-ministro Mark Rutte, conquistou o primeiro lugar nas eleições, brecando a temida ascensão da extrema direita.

Mas, entre esse partido e seu sócio de governo, o Trabalhist­a, a perda foi brutal: 37 das 79 cadeiras do Parlamento que haviam conseguido no pleito anterior (2012).

Parece um sinal evidente de que os holandeses não estão tão felizes com o governo de turno, por mais que tenham motivos para estar felizes com o país em que vivem.

Não é um fenômeno apenas holandês, mas um problema generaliza­do, do qual também não escapa o Brasil. Prova-o a avassalado­ra impopulari­dade do presidente atual e de sua antecessor­a.

Na França, por falar nisso, é a mesma coisa: o presidente de tur- no, François Hollande, e seu antecessor, Nicolas Sarkozy, nem sequer conseguira­m se candidatar para o pleito do mês de abril.

Sarkozy nem foi ao segundo turno nas primárias da direita francesa. Hollande desistiu de concorrer porque percebeu que seria massacrado se tentasse a reeleição.

Moral da história: há uma nítida crise global do sistema partidário. Não da democracia em si, que, conforme todas as pesquisas conhecidas, continua sendo o que dela dizia Winston Churchill: o pior dos regimes, fora todos os outros.

A crise é da maneira como a democracia está funcionand­o. Parece evidente que os representa­dos (o eleitorado) não se sentem atendidos pelos representa­ntes (parlamenta­res, governador­es, presidente­s, primeiros-ministros, o que for).

É essa sensação de orfandade que permitiu, no exemplo mais gritante, a eleição de Donald Trump.

É urgente que os democratas do mundo todo, de quaisquer matizes, façam uma análise profunda do que está ocorrendo, sob pena de a democracia viver de susto em susto, como aconteceu na Holanda agora e pode se repetir na França.

Se eu pudesse palpitar, diria o que escreveu Béatrice Delvaux, editoriali­sta-chefe do belga “Le Soir”: “Se se quer lutar contra os partidos que alimentam o ódio, é preciso partidos que alimentem o imaginário e os sonhos”.

Vale para a Europa, vale para o Brasil. crossi@uol.com.br

A crise dos partidos pede que, contra os que pregam o ódio, se apresente quem alimenta o sonho

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