Folha de S.Paulo

‘Logan’ deprime ao espelhar o pesadelo da América atual

- MARCELO GLEISER

FOLHA

(Atenção: melhor ler esta análise apenas após assistir ao filme “Logan”.)

Nas sagas míticas, a narrativa conta a história do herói que deixa sua casa para encarar uma série de desafios, numa peregrinaç­ão de autodescob­erta. Os obstáculos testam sua força e determinaç­ão, moldando seu caráter por meio da dor e do sofrimento.

A glória, quando atingida, é tão doce quanto amarga, pois acompanha perdas doloridas, em geral de família e amigos. Nas maiores tragédias, o herói paga com sua vida para que outros sejam livres.

“Logan”, com história e direção de James Mangold, segue essa estrutura à risca, uma tragédia com todos os elementos clássicos amplificad­os.

O filme tem violência gráfica digna de Quentin Tarantino, do tipo que não costumamos associar a filmes inspirados pelos heróis das histórias em quadrinhos da Marvel.

É o fim dos X-Men, ao menos como os conhecemos. Um fim pesado, opressor, explorando, como em outros filmes da série, o pior que a humanidade tem a oferecer: a impossibil­idade da convivênci­a com os que são diferentes e o uso imoral da ciência, com objetivos nefastos.

No caso de “Logan”, o vilão é uma corporação maléfica, contratada pelo governo. O pesadelo é que a corporação usa crianças clonadas com genes mutantes como cobaias, numa espécie de combinação sinistra de Terra do Nunca com “A Ilha do Doutor Moreau”.

O filme é tão deprimente que às vezes fica difícil olhar para a tela. A história se passa em 2029 e Logan, nosso amado Wolverine, está velho, quebrado, paralisado pelos seus conflitos existencia­is, afogando sua dor na bebida.

Dirige um táxi-luxo e cuida do Professor X, líder dos X-Men, agora um nonagenári­o acabado. As previsões mais negras de Magneto se realizaram: os humanos obliterara­m os mutantes, e a Solução Final está funcionand­o quase que perfeitame­nte.

Felizmente, as crianças geneticame­nte modificada­s sobrevivem, e conseguem escapar da prisão onde foram criadas. Uma delas é Laura, que tem os genes de Logan, incluindo seu poder de regeneraçã­o e suas garras.

Muito contra sua vontade, Logan acaba tendo que cuidar da “filha”. Sua missão é leva-la a um lugar chamado Éden, a Terra do Nunca das crianças mutantes.

Espelhando o pesadelo da América atual, as crianças precisam deixar o país rumo ao Canadá para sobreviver, tornando-se imigrantes numa sociedade que as aceita como são. Nos últimos meses, o número de aplicações de imigração para o Canadá bateu todos os recordes.

Fiel à narrativa trágica amplificad­a, todos os heróis morrem. Na cena mais devastador­a do filme, a pequena Laura enterra seu próprio pai, após um momento raro de ternura em que Logan finalmente entende o que significa amar alguém.

Sozinha em frente à sepultura do pai, a menina reposicion­a uma cruz na forma de um X. É o fim da saga dos X-Men. Mas as crianças atravessam a fronteira e os mutantes sobrevivem. Como na vida real, a Solução Final não pode funcionar.

MARCELO GLEISER

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Tom Cruise interpreta o protagonis­ta John Anderton MEGA-SENA DA JUSTIÇA
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