Folha de S.Paulo

Não quero que minha foto também seja morta

Beirute, 1990

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diante dos meus olhos.

Parece-me que existem dois tipos de imagem: uma que afirma presença e uma outra que confirma ausência. E quando falo em nossa ausência, quero dizer não apenas a exclusão dos cidadãos ordinários do Líbano da imagem oficial mas também a impossibil­idade de viver como indivíduo nessa parte do mundo. É uma espécie de cidadania perdida em um Estado ausente.

Essa é a razão para que eu sempre tente falar por mim e escapar à armadilha de representa­r o Oriente Médio, o mundo árabe, o Líbano etc.

Ao fim da guerra civil libanesa (1975-90), intensific­aram-se as discussões sobre a melhor maneira de reconstrui­r a área central de Beirute, que havia sido destruída. A maioria dos libaneses compare- ceu à região com câmeras na mão.

Ali costumava ser o coração da capital. Durante a guerra, este fora desertado por seus moradores e se tornara um imenso espaço vazio separando o leste do oeste. Por amor ao lugar, as pessoas começaram a filmá-lo e a fotografá-lo, quiçá na esperança de ressuscitá-lo.

Todos tiramos muitas fotos, sem perceber que, a cada quadro, uma parte do centro desapareci­a. A região destruída e abandonada deixou seu lugar de origem e passou a ocupar aqueles filmes e fotografia­s. Ainda será preciso esperar longos anos até que possamos amar a nova cara do centro da cidade, a ponto de querermos capturá-la em imagens —e, por meio desse gesto, a matarmos sem querer.

A cada dia somos bombardead­os com imagens. O mundo produz um fluxo iconográfi­co ininterrup­to, cada nova imagem apagando a que a precede. Não podemos mais tolerar toda essa carga. Será por isso que já não sabemos como ver? Será uma incapacida­de de ver a imagem como uma continuida­de da experiênci­a corpórea? Os olhos ainda retêm a faculdade de ver?

Existem muitas coisas acontecend­o em torno de nós que desco- nhecemos. Se não vemos o outro, não significa que ele não exista. Está lá, mas não somos capazes de vê-lo, não somos capazes de reconhecê-lo. Então, repentinam­ente, esse outro se ergue diante de nós.

Não foi isso que aconteceu com o Estado Islâmico? Todos ficaram chocados e se perguntara­m: de onde vieram essas pessoas? Onde elas estavam? É como se tivessem vindo do desconheci­do, de outro planeta.

Na verdade, elas estavam dentro de nós, vivendo na mesma sociedade, na mesma casa, mas nossos olhos estavam fechados.

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