Estudo desvenda por que as tartarugas retraem a cabeça
Fósseis sugerem que comportamento surgiu para dar botes mais poderosos
Uso defensivo do pescoço ‘encolhível’ foi modificação dos hábitos predatórios originais, afirmam paleontólogos FOLHA
O plácido hábito de esconder a cabeça dentro do casco, típico de muitas das tartarugas, tem uma história evolutiva maquiavélica, de acordo com um novo estudo.
Certos fósseis sugerem que o comportamento desses bichos surgiu não como estratégia para se proteger de predadores, mas para dar botes mais poderosos em presas incautas.
Na verdade, o uso defensivo do pescoço “encolhível” das tartarugas foi apenas uma modificação posterior dos hábitos predatórios originais dos bichos, argumenta o trio de paleontólogos liderado por Jérémy Anquetin, do Museu Jurassica, na Suíça.
Os resultados foram publicados recentemente na revista especializada de acesso livre “Scientific Reports”.
A chave para a argumentação de Anquetin e seus colegas foi a análise das vértebras do pescoço da Platychelys oberndorferi, uma tartaruga extinta que vivia onde hoje é a região da Baviera, na Alemanha, no fim do período Jurássico (há mais ou menos 150 milhões de anos, portanto). A espécie em si é conhecida desde o século 19, mas só agora alguns fósseis dela puderam ser examinados com a devida calma.
Hoje em dia, existem dois grandes grupos de tartarugas, designados com os nomes latinos Pleurodira e Cryptodira (veja infográfico). Uma das principais diferenças entre os bichos tem justamente a ver com a maneira como eles encolhem seus pescoços.
As Pleurodira (animais como a tartaruga-da-amazônia, que têm hábitos aquáticos) abrigam a cabeça virando o pescoço de lado, de modo que ele fica embaixo de uma espécie de aba do casco.
Já as Cryptodira, entre as quais estão os nossos jabutis (que são terrestres), dobram o pescoço no plano vertical e o puxam diretamente para dentro do casco. TUDO NAS VÉRTEBRAS Para que cada um dos grandes tipos de tartarugas mexa seus pescoços de seu modo peculiar, é preciso que existam diferenças de “design” nas vértebras cervicais (as do pescoço). As Pleurodira (de pescoço “guardado de lado”) têm vértebras estreitas, enquanto as Cryptodira (que enfiam o pescoço dentro do casco) possuem vértebras largas, além de outros detalhes anatômicos mais complicados que também variam de uma para outra.
Ocorre que o fóssil alemão, aPlatychelys oberndorferi, embora seja classificada como Pleurodira em razão da maioria dos detalhes de sua anatomia, tinha vértebras que a levariam a recolher o pescoço pelo método das Cryptodira — até certo ponto.
Os detalhes de seus ossos revelam que esse recolhimento seria apenas parcial, o que elimina a possibilidade de que ele servisse para proteger a cabeça do bicho — essa parte crucial do corpo continuaria para fora de qualquer jeito.
Como explicar o paradoxo? Para os paleontólogos, outras características do bicho extinto podem ajudar nessa tarefa. A carapaça curiosamente ornamentada do animal, bem como suas garras poderosas, fazem dele quase um sósia da temida matá-matá (Chelus fimbriata),
Trata-se de outra espécie amazônica que é conhecida por ficar à espreita no fundo d’água, disfarçando-se de tronco coberto por vegetação aquática. Quando um peixe distraído passa por perto, a matá-matá rapidamente estica seu pescoço e abre a bocarra, capturando a presa por sucção.
A P. oberndorferi teria caçado mais ou menos do mesmo jeito, propõem os paleontólogos. “A retração do pescoço poderia ter evoluído gradualmente, como uma maneira de permitir a propulsão rápida da cabeça para a frente durante a captura de presas debaixo d’água”, escrevem eles. ADAPTAÇÃO SECUNDÁRIA Existe um termo específico para designar esse tipo de “reciclagem evolutiva”: exaptação (algo como “adaptação secundária”).
Trata-se, na verdade, de um processo extremamente comum, já que a evolução, ao contrário dos “designers” humanos, não pode ser dar ao luxo de criar um novo formato de organismo do zero, pois precisa sempre trabalhar com as características legadas a uma criatura por seus ancestrais e explorá-las do melhor jeito possível.
É o caso das penas das aves: muitas delas são essenciais para o voo, mas originalmente elas eram apenas filamentos e penugens que ajudavam a manter o bicho aquecido ou a cortejar parceiros. É comum imaginar que a capacidade que as tartarugas têm de retrair o pescoço evoluiu como proteção contra predadores 2 No novo estudo, porém, cientistas da Suíça analisaram um fóssil de 150 milhões de anos da tartaruga Platychelys oberndorferi, uma Pleurodira primitiva. As vértebras do pescoço do bicho mostram que ele encolhia o pescoço para dentro, e não para o lado, mas de forma incompleta 3 Como essa retração incompleta não era suficiente para "guardar" o pescoço da criatura, os paleontólogos propõem que, na verdade, ela servia para dar impulso ao bote da tartaruga quando ela atacava suas presas 4