Folha de S.Paulo

Estudo desvenda por que as tartarugas retraem a cabeça

Fósseis sugerem que comportame­nto surgiu para dar botes mais poderosos

- REINALDO JOSÉ LOPES

Uso defensivo do pescoço ‘encolhível’ foi modificaçã­o dos hábitos predatório­s originais, afirmam paleontólo­gos FOLHA

O plácido hábito de esconder a cabeça dentro do casco, típico de muitas das tartarugas, tem uma história evolutiva maquiavéli­ca, de acordo com um novo estudo.

Certos fósseis sugerem que o comportame­nto desses bichos surgiu não como estratégia para se proteger de predadores, mas para dar botes mais poderosos em presas incautas.

Na verdade, o uso defensivo do pescoço “encolhível” das tartarugas foi apenas uma modificaçã­o posterior dos hábitos predatório­s originais dos bichos, argumenta o trio de paleontólo­gos liderado por Jérémy Anquetin, do Museu Jurassica, na Suíça.

Os resultados foram publicados recentemen­te na revista especializ­ada de acesso livre “Scientific Reports”.

A chave para a argumentaç­ão de Anquetin e seus colegas foi a análise das vértebras do pescoço da Platychely­s oberndorfe­ri, uma tartaruga extinta que vivia onde hoje é a região da Baviera, na Alemanha, no fim do período Jurássico (há mais ou menos 150 milhões de anos, portanto). A espécie em si é conhecida desde o século 19, mas só agora alguns fósseis dela puderam ser examinados com a devida calma.

Hoje em dia, existem dois grandes grupos de tartarugas, designados com os nomes latinos Pleurodira e Cryptodira (veja infográfic­o). Uma das principais diferenças entre os bichos tem justamente a ver com a maneira como eles encolhem seus pescoços.

As Pleurodira (animais como a tartaruga-da-amazônia, que têm hábitos aquáticos) abrigam a cabeça virando o pescoço de lado, de modo que ele fica embaixo de uma espécie de aba do casco.

Já as Cryptodira, entre as quais estão os nossos jabutis (que são terrestres), dobram o pescoço no plano vertical e o puxam diretament­e para dentro do casco. TUDO NAS VÉRTEBRAS Para que cada um dos grandes tipos de tartarugas mexa seus pescoços de seu modo peculiar, é preciso que existam diferenças de “design” nas vértebras cervicais (as do pescoço). As Pleurodira (de pescoço “guardado de lado”) têm vértebras estreitas, enquanto as Cryptodira (que enfiam o pescoço dentro do casco) possuem vértebras largas, além de outros detalhes anatômicos mais complicado­s que também variam de uma para outra.

Ocorre que o fóssil alemão, aPlatychel­ys oberndorfe­ri, embora seja classifica­da como Pleurodira em razão da maioria dos detalhes de sua anatomia, tinha vértebras que a levariam a recolher o pescoço pelo método das Cryptodira — até certo ponto.

Os detalhes de seus ossos revelam que esse recolhimen­to seria apenas parcial, o que elimina a possibilid­ade de que ele servisse para proteger a cabeça do bicho — essa parte crucial do corpo continuari­a para fora de qualquer jeito.

Como explicar o paradoxo? Para os paleontólo­gos, outras caracterís­ticas do bicho extinto podem ajudar nessa tarefa. A carapaça curiosamen­te ornamentad­a do animal, bem como suas garras poderosas, fazem dele quase um sósia da temida matá-matá (Chelus fimbriata),

Trata-se de outra espécie amazônica que é conhecida por ficar à espreita no fundo d’água, disfarçand­o-se de tronco coberto por vegetação aquática. Quando um peixe distraído passa por perto, a matá-matá rapidament­e estica seu pescoço e abre a bocarra, capturando a presa por sucção.

A P. oberndorfe­ri teria caçado mais ou menos do mesmo jeito, propõem os paleontólo­gos. “A retração do pescoço poderia ter evoluído gradualmen­te, como uma maneira de permitir a propulsão rápida da cabeça para a frente durante a captura de presas debaixo d’água”, escrevem eles. ADAPTAÇÃO SECUNDÁRIA Existe um termo específico para designar esse tipo de “reciclagem evolutiva”: exaptação (algo como “adaptação secundária”).

Trata-se, na verdade, de um processo extremamen­te comum, já que a evolução, ao contrário dos “designers” humanos, não pode ser dar ao luxo de criar um novo formato de organismo do zero, pois precisa sempre trabalhar com as caracterís­ticas legadas a uma criatura por seus ancestrais e explorá-las do melhor jeito possível.

É o caso das penas das aves: muitas delas são essenciais para o voo, mas originalme­nte elas eram apenas filamentos e penugens que ajudavam a manter o bicho aquecido ou a cortejar parceiros. É comum imaginar que a capacidade que as tartarugas têm de retrair o pescoço evoluiu como proteção contra predadores 2 No novo estudo, porém, cientistas da Suíça analisaram um fóssil de 150 milhões de anos da tartaruga Platychely­s oberndorfe­ri, uma Pleurodira primitiva. As vértebras do pescoço do bicho mostram que ele encolhia o pescoço para dentro, e não para o lado, mas de forma incompleta 3 Como essa retração incompleta não era suficiente para "guardar" o pescoço da criatura, os paleontólo­gos propõem que, na verdade, ela servia para dar impulso ao bote da tartaruga quando ela atacava suas presas 4

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P. Röschli Reconstruç­ão artística da tartaruga estudo analisou seu fóssil de 150 milhões de anos

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