Folha de S.Paulo

‘Tornar caixa 2 crime não reduz corrupção’

Pesquisado­r Alaor Leite critica aumento de penas e cita falta de estudos que mostrem eficiência dessa medida

- MARIO CESAR CARVALHO

Para ele, é preciso examinar exemplos internacio­nais, como a Alemanha, onde caixa 2 não é crime específico

É ingênuo e preguiçoso esperar que a criminaliz­ação do caixa dois de partidos vá reduzir a corrupção. Alaor Leite, doutorando em direito na Universida­de Ludwing-Maimilians, em Munique, e autor dessa avaliação, não se alinha com os entusiasta­s das Dez Medidas contra a Corrupção.

Leite, que estuda com o alemão Claus Roxin, tido como um dos maiores criminalis­tas do mundo, organizou um livro sobre crime e política por considerar que a discussão brasileira sobre esses temas está repleta de equívocos e não tem eco no Congresso.

À Folha Leite diz que a anistia ao caixa dois tem um ardil, porque visa perdoar outros crimes, e obscurece o debate: “Enquanto não retirarmos de cena a discussão da anistia, não iremos discutir o essencial: como construir um sistema jurídico-eleitoral legítimo e eficiente?”. Folha -Caixa dois é crime?

Alaor Leite - Manter um caixa dois significa estabelece­r uma contabilid­ade não declarada aos órgãos competente­s. Se essa conduta for praticada por instituiçã­o financeira, é em si criminosa. Se essa conduta for praticada por qualquer outra pessoa jurídica, como os partidos, ela não configura, por si só, crime. Evidenteme­nte, a contabilid­ade paralela pode estar conectada a outros delitos, que possuem outros requisitos que devem ser provados. Possuir uma faca afiada não é crime em si. Ferir alguém com a faca, sim. Quando ocorre o delito?

O sujeito que possua o dever de declarar as contas eleitorais e acabe por omitir determinad­a conta —o caixa dois— na prestação de contas eleitorais pode cometer o delito de falsidade eleitoral, cuja pena pode chegar a três anos de reclusão. Esse delito nada tem a ver com corrupção. O caixa dois pode ser também configurar crime tributário ou pode estar destinado ao pagamento de vantagens indevidas a funcionári­os públicos com vistas a benefícios futuros, um meio clássico de corrupção. O caixa dois em um partido político, sem mais, não é crime autônomo.

Quer-se criminaliz­ar o caixa dois como antessala da corrupção, mas as condutas não se confundem. Esse ponto deve ser debatido. Criminaliz­ar o caixa dois reduziria a corrupção?

Acreditar que apenas a criminaliz­ação autônoma do caixa dois pode reduzir a corrupção é, sim, ingênuo e preguiçoso. A discussão deve ser muito mais ampla. Por que o sr. chama de delirante a iniciativa dos políticos de anistiar o caixa dois?

É, ao mesmo tempo, delirante e ardilosa. Delirante porque não se pode anistiar o que não existe, seria algo como uma herança de uma pessoa viva ou o assassinat­o de um morto. A anistia refere-se a fatos passados que configurav­am crimes e que devem ser apagados, especialme­nte por razões nobres de estabeleci­mento de paz social. Veja-se o exemplo da possível anistia a integrante­s dos grupos paramilita­res na Colômbia. Comparemos, enrubescid­os, esse caso com a tentativa de anistiar um delito inexistent­e. A discussão é ardilosa, pois pode ser que por trás dessa discussão esteja a abjeta tentativa de anistiar outros delitos bastante graves, como a corrupção. Enquanto não retirarmos de cena a discussão da anistia, não conseguire­mos discutir o essencial: como construir um sistema jurídicoel­eitoral legítimo e eficiente? Por que o sr. critica a ideia de elevar penas para corrupção?

O aumento de penas para o crime de corrupção pressupõe um estudo esmerado de outros mecanismos que podem ser mais eficientes, menos gravosos e menos custosos para a sociedade. Não li esses estudos nos documentos oficiais, tampouco na exposição de motivos do projeto de lei 4850/16 [as Dez Medidas de Combate à Corrupção], que é lacônica e confusa. Os proponente­s preferem grandiloqu­entes discursos à enunciação de argumentos.

O sistema jurídico-eleitoral pode ser aperfeiçoa­do, especialme­nte com regras rígidas garantidor­as da transparên­cia das contas partidária­s. Os partidos políticos são pessoas jurídicas de direito privado, mas gozam de outra estatura se comparados a uma fábrica: eles representa­m a única via de consecução dos anseios democrátic­os da população. Quanto à pena da corrupção, ela pode chegar atualmente a 16 anos de prisão. O aumento de pena serviria apenas como um aumento no poder de barganha dos acusadores nos acordos de colaboraçã­o. Como é a lei que a Espanha criou em 2015 para punir financiame­nto ilegal de partidos?

A criminaliz­ação se refere ao ato de financiar irregularm­ente partidos e não à manutenção, no interior do partido, de um caixa dois. O financiame­nto irregular é o polo ativo; o caixa dois, o polo passivo.

O mais interessan­te é perceber que o crime introduzid­o na Espanha possui elementos bastante restritos, se cotejados com aqueles que constam do projeto de lei das Dez Medidas, o que garante maior segurança jurídica. A lei penal veio acompanhad­a de alterações na esfera eleitoral, com a edição de uma lei de controle da atividade econômico-financeira dos partidos. Há enorme discussão científica a esse respeito na Espanha. Mas não se lê nada a esse respeito na justificat­iva do projeto que tramita no Congresso. As leis internacio­nais podem inspirar o debate brasileiro?

Não há mercadoria pronta para ser desembaraç­ada em nossa alfândega. Precisamos observar as nossas especifici­dades, pois por essas bandas “cordiais”, de fato, “a democracia não passou de um grande mal-entendido”, para recordar Sérgio Buarque de Holanda. Contudo, um legislador conscienci­oso deve analisar os exemplos estrangeir­os com humildade e atenção. A Alemanha lidou com graves casos de caixa dois eleitoral, como o do ex-chanceler Helmut Kohl, e desconhece um crime específico de caixa dois. Por que não estudar todos esses exemplos antes de propor uma isolacioni­sta e histriônic­a salvação nacional? Os nossos proponente­s ignoram o debate internacio­nal. Também a ciência brasileira não foi consultada. Tais como estão, as propostas existentes manifestam inescapáve­l contradiçã­o: ao ignorarem a discussão científica nacional e internacio­nal, os proponente­s privatizam o que deveria ser público, destilando o veneno que pretendem combater.

 ?? Cesar Machado - 20.ago.2014/Gazeta do Povo / Folhapress ?? O pesquisado­r Alaor Leite, douturando na Alemanha, que estuda corrupção eleitoral
Cesar Machado - 20.ago.2014/Gazeta do Povo / Folhapress O pesquisado­r Alaor Leite, douturando na Alemanha, que estuda corrupção eleitoral

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