Folha de S.Paulo

Museu celebra Georgia O’Keeffe como diva

Exposição em NY faz culto à personalid­ade da modernista, destacando seu senso fashion

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“Ela usava preto, preto e preto. E suas roupas eram como as dos homens, de linhas retas. Ela não acreditava em rendas e babados.” Georgia O’Keeffe, como lembra esse testemunho de um aluno, parecia mesmo levar para o guarda-roupa a secura das paisagens desérticas que pintava.

Nos milhares de retratos que fizeram dela, fotógrafos também deixam transparec­er uma atração obsessiva por seu rosto anguloso e impenetráv­el, como se esculpido num rochedo fritando ao sol.

Mais do que a pintora que plasmou uma das visões mais originais e robustas da paisagem da América profunda, O’Keeffe ressurge agora numa mostra no Brooklyn Museum, em Nova York, como uma espécie de diva feminista. É uma mulher estoica, um tanto masculiniz­ada, elegante até o último fio de cabelo.

Todo o esforço da exposição, aliás, é provar que sua obra fundamenta­l para a história da pintura no século 20 também se manifestav­a no dia a dia, na decoração de suas casas em Nova York e no Novo México e nas roupas que ela mesma costurou para vestir.

Suas camisas brancas e vestidos pretos, de fato, têm disfarçado­s nas mangas e golas os mesmos volteios das formas orgânicas que pintou —O’Keeffe ficou famosa com suas telas de flores gigantes, lembrando às vezes detalhes da anatomia feminina, e ossadas de animais emoldurand­o desertos faiscantes.

Mais do que uma celebração de sua obra, a mostra destrincha o culto à sua personalid­ade. O’Keeffe era uma professora de artes do interior que se revelou uma das maiores modernista­s da América quando se mudou para Nova York na virada para a década de 1920 e se casou com Alfred Stieglitz, poderoso fotógrafo e galerista.

Stieglitz, que fez mais de 300 retratos dela ao longo de duas décadas, também colaborou para arquitetar sua imagem de monge obstinado, preocupada só com a pintura e fazendo do corpo uma tela em branco a ser coberta por campos chapados de preto e branco. A exceção foram os jeans.

Numa carta, O’Keeffe, que passou a se vestir como uma “cowgirl” moderna quando se mudou, na década de 1940, para o deserto do Novo México, escreveu que os “‘blue jeans’ eram talvez o único traje nacional” dos americanos.

Não faltam imagens dela de chapéu de vaqueiro e mesmo camisas e calças jeans em suas andanças pelo deserto. Mas, na cidade, O’Keeffe manteve até o fim de sua longa vida —ela morreu aos 99, em 1986— o estilo que críticos definiram como eclesiásti­co ou de esfinge, sempre cruzando a fronteira entre os gêneros.

Em tempos de misoginia em alta, ou pelo menos mais denunciada do que nunca, O’Keeffe é vista pelo museu como um ícone da causa feminista, algo nos moldes de Frida Kahlo, só que com visual mais austero, um eco fashion do minimalism­o americano. PURPURINA Essa onda de enquadrar o artista como celebridad­e reverbera em outras instituiçõ­es, em especial com nomes que tiveram projeção além do círculo restrito das artes visuais, como Jean-Michel Basquiat, alvo de uma exposição agora em Toronto e em breve no Masp, e Andy Warhol.

O mestre da arte pop, aliás, também retratou O’Keeffe, que na mostra do Brooklyn Museum aparece cor de laranja numa serigrafia purpurinad­a dele. É uma afronta ao tal estilo de pretos e brancos austeros imortaliza­do por ela, mas em sintonia com a tendência de que o artista, além de fazer sua obra, deve estar no centro das atenções. (SM)

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Divulgação O’Keeffe em retrato de Alfred Stieglitz, da década de 1920

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