Folha de S.Paulo

Tiros na civilizaçã­o e caça a tarados

- REINALDO AZEVEDO

O JUIZ Alexandre Abrahão Dias Teixeira, do 3º Tribunal do Júri do Rio, mandou soltar dois policiais que estavam em prisão preventiva, suspeitos de executar, no dia 31 de março, dois bandidos quando já estavam estendidos no chão, feridos. Há um vídeo com a cena do horror.

No tiroteio, em frente à escola Jornalista Daniel Piza, morreu a estudante Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos. Em seu corpo, cinco perfuraçõe­s. Uma delas provocada por arma compatível com a dos policiais. Uma tragédia brasileira.

Dias Teixeira atendeu a parecer favorável à suspensão da prisão preventiva, emitido pelo Ministério Público Estadual. A promotora Carmen Eliza Bastos de Carvalho argumentou que os PMs não se enquadrava­m nos requisitos do Artigo 312 do Código de Processo Penal. E também se ancorou no 314.

Parecer e decisão não são absurdos. Se há um fiapo de incerteza sobre a reação legítima (Art. 314) e se não há evidências de que os acusados estejam prestes a cometer novos crimes, de que possam pôr em risco a instrução criminal ou impedir o cumpriment­o da lei penal (Art. 312), não há por que manter a preventiva.

O alarido da extrema-direita era grande. Os habitantes da “Bolsonarol­ândia” saíram em defesa de uma arma na mão e ideias torpes na cabeça. Nas redes sociais, passaram a defender execuções sumárias. Em relação a esses tipos, não resta outra coisa senão a sentença fatalista: o cheiro de presunto lhes assanha a fome de barbárie.

A esquerda entrou na competição para ver quem escoiceava mais o bom senso. Cronistas sempre piedosos nem se apressaram em saber se parecer e decisão eram procedente­s. Cabe lembrar, ademais, que não é a fealdade de um crime que define a necessidad­e ou não da preventiva. Isso fica para o julgamento.

Detestávei­s, aí sim, foram as consideraç­ões do juiz Dias Teixeira. O doutor escreveu ter passado “muitas horas meditando”... Sobre o quê? Ele responde: “especialme­nte [sobre] a voz das ruas” — leiam-se: redes sociais, essas ruas virtuais que exalam o fedor do bueiro do capeta.

E aí ele apela a um clichê em favor da justiça do alarido: “As relações sociais mudaram, e a magistratu­ra precisa mudar também. O juiz moderno não pode mais ser aquela figura da ‘torre de marfim’, especialis­ta em temas do Direito, mas insensível ao que acontece fora de seu gabinete”.

Quando um homem da lei chama o aparato legal e institucio­nal de “torre de marfim”, estejam certos: estamos todos em perigo. Ele avança: “A sociedade, estou consciente, está desestrutu­rada pela guerra assimétric­a enfrentada nesta ex-cidade maravilhos­a. O cidadão, no final, pretende tão somente viver em paz e merece pelos altos preços que paga em todos os sentidos.” Não entendi. Execuções sumárias, por acaso, resgatam a “simetria”?

Há eventos que, na sua banalidade literalmen­te crua, advertem-nos de que uma nova era pode estar sendo inaugurada. E nem sempre se anda para a frente.

Quando um juiz tenta impor a um ex-presidente da República uma disciplina ao arrepio da lei; quando membros do MPF abusam de sua autoridade e gravam um vídeo incitando a população a lutar contra “os políticos”; quando um juiz prefere “a voz das ruas” à razão técnica — ainda que ambas conduzisse­m ao mesmo desfecho —, tem-se um encontro marcado com o abismo caso não se mude o caminho.

Em entrevista concedida ao jornalista Wagner Carelli, publicada pela gloriosa e extinta revista “BRAVO!”, no fim dos anos 90, o cineasta Bernardo Bertolucci afirmou que o “fascismo começa caçando tarados”.

Não é que ele gostasse de tarados. É que a caça aos ditos-cujos não pode ser a medida da civilizaçã­o. Não para um liberal, democrata e direitista, como sou.

Quando um homem da lei chama o aparato legal de ‘torre de marfim’, estamos todos em perigo

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