Folha de S.Paulo

Mostra esquadrinh­a as luzes de Cícero Dias

Retrospect­iva destaca como o modernista ancorou obras figurativa­s e abstratas na luminosida­de berrante dos trópicos

- SILAS MARTÍ

Exposição no CCBB tem 125 trabalhos do artista pernambuca­no que se radicou em Paris, onde se firmou na cena global

No engenho de açúcar de Cícero Dias, homens brotam do chão e mulheres carnudas desabrocha­m como flores, de pétalas aos montes. Lavadeiras nuas esfregam roupas no riacho, e uma cortesã aguarda o senhor da terra refestelad­a sobre os lençóis cor-derosa de uma cama plantada bem no meio do canavial.

Esse mundo fantástico —e encharcado de sexo— das telas do modernista, alvo de uma retrospect­iva agora no Centro Cultural Banco do Brasil paulistano, está estruturad­o em cima da cor, tons luminosos, às vezes berrantes, como o vestido escarlate das gêmeas de outra pintura.

Mesmo em seus trabalhos mais abstratos, Dias não esquece a luz dos trópicos. Recife, onde o mundo começava, na visão do artista nascido num engenho ali perto, parece entranhado até nas mais secas de suas composiçõe­s construtiv­istas, de formas angulosas que parecem serenas praias pernambuca­nas colapsadas e passadas a limpo com régua e esquadro.

É como se suas lembranças um tanto edulcorada­s de menino se traduzisse­m na mais avançada das vanguardas geométrica­s, como deixam claro as 125 obras da mostra.

Toda essa metamorfos­e, no caso, aconteceu em Paris, onde Dias viveu da década de 1930 até sua morte, há 14 anos. Na capital francesa, então o centro nevrálgico do mundo da arte, o artista foi celebrado pela crítica como um selvagem civilizado, um jeito romântico de aludir à potência de uma obra singular que começava a flertar com o cubismo e certa aridez geométrica.

Dias, até então visto como um surrealist­a alinhado a Chagall e suas musas flutuantes, encontrou em Picasso uma inspiração mais forte — seus primeiros retratos da mulher, Raymonde, evocavam, aliás, os desvios anatômicos dos personagen­s do espanhol.

Esses desvios depois ficaram ainda mais evidentes numa série de telas absurdas, reunidas agora pela primeira vez desde a década de 1940.

Nesses quadros que fez em Lisboa, onde se refugiou da França ocupada pelos nazistas, um galo cheio de arestas pode ser ao mesmo tempo um abacaxi, um guarda-chuva se torna um instrument­o musical e um mamoeiro talvez seja também um dançarino.

“São obras de dupla leitura”, diz Denise Mattar, que organiza a mostra. “Mesmo protegidos, eles estavam mergulhado­s na guerra, então ele estava exorcizand­o ali os fantasmas do conflito.”

Mas esses monstros só desaparece­ram mesmo depois da guerra, quando o artista voltou a Paris e mergulhou na abstração geométrica.

Na última ala da mostra, aliás, uma sucessão de telas construtiv­istas dá a impressão de que Dias teria abandonado de vez aquele engenho primordial da base de sua obra.

Mas tudo volta, em contornos mais firmes e estruturad­os, em algumas das últimas telas figurativa­s ali, de moças de sombrinha conversand­o à sombra de jardins tropicais — seu retorno triunfal à casa. QUANDO abre sex. (21), às 11h; de qua. a dom., das 9h às 21h; até 3/7 ONDE Centro Cultural Banco do Brasil, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651 QUANTO grátis

 ??  ?? ‘Infância em Boa Viagem’, tela de Cícero Dias realizada em 1950, e ‘Abstração’, obra de 1951, ambas na retrospect­iva dedicada ao modernista agora no Centro Cultural Banco do Brasil
‘Infância em Boa Viagem’, tela de Cícero Dias realizada em 1950, e ‘Abstração’, obra de 1951, ambas na retrospect­iva dedicada ao modernista agora no Centro Cultural Banco do Brasil

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