Folha de S.Paulo

Gestão citou médicos à Justiça sem avisá-los

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Uma mulher usando calça e blusa surradas caminha pela avenida Duque de Caxias, no centro de São Paulo. No meio da calçada, um homem com roupas sujas dorme tranquilam­ente por volta das 11h desta quinta-feira (25).

Um cachimbo de metal está saindo do bolso do homem. A mulher então se abaixa e furta o cachimbo do rapaz. Pega um isqueiro e começa a fumar os restos de crack no objeto. Ela caminha e vai até a região da Santa Cecília, embaixo do Minhocão.

A cena foi flagrada pela Folha. Ali, sob o viaduto, o fluxo de usuários de crack aumentou, segundo relatório da Guarda Civil Metropolit­ana que aponta 23 áreas, entre elas a região da avenida Paulista, com maior concentraç­ão de dependente­s após a ação policial da cracolândi­a.

A prisão de traficante­s e a desobstruç­ão de vias não vieram com boa parte das ações sociais e de saúde prometidas pela gestão Doria (PSDB).

Também nesta quinta, na praça Marechal Deodoro, Cássio, 20, pedia R$ 1 para comprar o almoço no restaurant­e popular Bom Prato. “Às vezes, aparece um pessoal de saúde. Mas o que aparece mais é guarda para tirar nossas coisas”, disse o usuário.

O ponto já era abrigo para moradores de rua, mas nos últimos dias a situação piorou, dizem comerciant­es.

Na praça ao lado, a Olavo Bilac, uma barraquinh­a foi montada na noite de quarta (24). “Cheguei, e a barraca estava aí. Eles [dependente­s] ficam circulando durante o dia. À noite, ficam mais reunidos, dormindo na praça”, contou Valdir Andrade, 62, dono de uma banca de jornal.

A alguns metros dali, na rua Apa, três usuários de crack compartilh­avam dois cachimbos para fumar a pedra. Um deles disse que foi abordado por funcionári­os da prefeitura. A via sempre foi ponto de pessoas em situação de rua, pois existe ali um centro de acolhida. No entanto, nos úl- timos dias, a situação se agravou. Paulo Antero, 46, conta que na terça precisou fechar sua venda de alimentos uma hora mais cedo, às 17h.

“Até então nunca tive problemas com ninguém, eles ficam entre eles. Mas na terça chegaram uns 40. A rua ficou fechada. Todos os lojistas ficaram receosos e fecharam.” ATROPELO “Há relatos de moradores e comerciant­es na rua dos Gusmões, e na do Triunfo, que também começam a dar sinais de estresse com toda essa situação. O problema é visível na rua das Palmeiras, embaixo do Minhocão, na rua Apa”, afirma Fábio Fortes, membro do Conseg (conselho de segurança) da Santa Cecília e Campos Elíseos.

“O que a gente observou é que no tão aclamado planejamen­to algo parece que ficou no atropelo. Nós aprovamos a iniciativa, mas estamos sentindo o desconfort­o.”

A gestão Doria diz que a dispersão já era esperada e que ela facilita a abordagem de agentes sociais e de saúde.

“Eles [dependente­s] estavam em uma região de difícil acesso [antiga cracolândi­a]. Hoje, temos mais acesso [às pessoas]. A operação facilitou porque, numa situação de encastelam­ento, protegidos pelo tráfico, era mais difícil”, disse Wilson Pollara, secretário municipal da Saúde. ALGUNS ERROS Já o prefeito admitiu que pode haver “alguns erros e ajustes necessário­s” na operação na cracolândi­a.

Para ele, a área, “fisicament­e”, se resumia a prédios que eram usados por uma facção criminosa para distribuiç­ão frequente de entorpecen­tes. “Isso acabou, não tem mais. Outra coisa é a existência de dependente­s químicos, são cerca de 400, estão ainda nesta região. E é exatamente o objeto da preocupaçã­o assistenci­al e medicinal”, disse Doria.

Já Mágino Alves, secretário estadual da Segurança Pública do governo Geraldo Alckmin (PSDB), afirmou que não estão mais programada­s ações policiais como a do último domingo. “O nosso propósito era acabar com aquele comércio absurdo de entorpecen­tes.” (ARTUR RODRIGUES, LEANDRO MACHADO, PAULO GOMES E MARIANA ZYLBERKAN)

DE SÃO PAULO

O pedido de internação forçada de usuários de drogas feito à Justiça pela gestão João Doria (PSDB) usou como justificat­iva a opinião de três especialis­tas dada em duas reportagen­s, de 2011 e 2013.

A ação cita três frases, identifica­ndo as reportagen­s das quais foram retiradas, como exemplos de gente favorável à internação compulsóri­a.

Nenhum dos médicos citados no pedido foi consultado pela prefeitura para avaliar a aplicação da medida no caso de usuários da cracolândi­a.

O pedido à Justiça foi feito na terça (23). A gestão Doria quer aval para internaçõe­s à força desde que aprovado por equipe de médicos e psicólogos. Hoje, para internar alguém compulsori­amente, além de avaliação médica, é necessário aprovação de Promotoria e Justiça —em casos analisados individual­mente.

Além da Defensoria Pública, a Promotoria também se manifestou nesta quinta (25) contra a intenção da gestão Doria de obter essa carta branca para internar à força.

Questionad­a, a prefeitura afirma não ter usado apenas frases, uma vez que também anexou as reportagen­s completas ao pedido. “O texto buscou dar um contexto ao juiz, buscando para isso dar também um histórico do problema que assola a cidade há 20 anos”, informou. ABSURDO COMPLETO A ação civil cita o psiquiatra Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da USP, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor da Unifesp, e o médico Drauzio Varella, colunista da Folha.

“Eu não defendo internação compulsóri­a como política pública, isso é um absurdo completo. Eu nunca disse que acho que se resolve a cracolândi­a com internação compulsóri­a”, disse Varella.

No documento protocolad­o pela prefeitura, a frase de Varella foi retirada de entrevista dada à revista “Época” em 2011, em que o médico diz apoiar a internação compulsóri­a como recurso extremo.

Guerra, da USP, também negou ter sido consultado.

“Se eu dei essa entrevista [em 2013], eu nem lembro”, afirmou o psiquiatra. Ele disse estranhar essa prática vindo da gestão Doria. “Isso não é padrão do prefeito.”

Para Guerra, a internação compulsóri­a deve ser usada somente em “situações raríssimas”. Na ação civil pública, a prefeitura afirma ter 270 vagas disponívei­s para esse tipo de tratamento.

Laranjeira, da Unifesp, confirmou que não foi procurado pela prefeitura, mas não deu entrevista por estar em viagem. (FERNANDA PERRIN, NATÁLIA PORTINARI E LEANDRO MACHADO)

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Giovanni Bello/Folhapress Ex-frequentad­ores da cracolândi­a que migraram para debaixo do Minhocão, no centro

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